O nosso desenvolvimento social é inaugurado ainda no conforto do útero materno. Enquanto estamos confortavelmente protegidos pela morna piscina de líquido amniótico que nos envolve, nos adaptamos às restrições de espaço que vão sendo alteradas à medida que ficamos maiores e mais parecidos com os seres aqui de fora. Até que fica impraticável manter a moradia. Somos obrigados a nascer. Se pudéssemos nos lembrar desse momento com a nitidez do impacto externo, talvez fôssemos capazes de compreender que ser “nós” é muito maior que ser “eu”. Afinal, se formos deixados à própria sorte ao nascer, não sobreviveremos. No entanto, aprendemos com incrível rapidez a deslocar o eixo de sobrevivência para a manutenção de nós mesmos, como se os outros não passassem de figurantes da nossa gloriosa, individualista e solitária história.
O choro é nosso primeiro recurso de linguagem. É por meio dele que chamamos a atenção dos adultos responsáveis pela satisfação de nossas necessidades físicas e afetivas. Ainda que as palavras articuladas não façam nenhum sentido, absorvemos os tons, os ritmos, a sinfonia de ruídos à nossa volta e constituímos um acervo de melodias mais ou menos agradáveis que afetarão de forma decisiva a aquisição da linguagem como forma de comunicação e interação com o mundo. Ainda no útero materno, somos afetados pelas sensações transmitidas pela voz da mãe e seus batimentos cardíacos. Dias após o nosso nascimento somos capazes de reconhecer a voz materna. Quando a mãe canta ou fala calmamente, emite vibrações reconfortantes que nos aliviam da dor de não podermos explicitar nossas necessidades, sensações e desconfortos. Quando a voz mais familiar que conhecemos produz sons ríspidos e alterados, entramos em estado de alerta, sentimos medo e apreensão. Somos absolutamente afetados pelo meio à nossa volta. E, aquela que se dispôs a nos abrigar antes de nossa estreia no mundo exterior, é o ponto de apoio e a referência mais importante, o norte, a rede de segurança. É bem devagar que chegamos à conclusão de que nós e ela não somos um ser uno.
O toque e o carinho personificam a linguagem do afeto na forma concreta. O prazer provocado pelo contato físico é a mensagem que expressa para nós a certeza de que estamos amparados nesse mundo. A ausência do carinho nos coloca em situação de abandono. Entendemos que não há quem cuide de nós, quem nos dê atenção, quem nos compreenda. A resposta do cérebro à sensação de abandono é acionar os alarmes de perigo e desligar tudo o que não esteja estritamente relacionado à necessidade de apenas sobreviver. Quando somos expostos a um ambiente em que a falta de carinho físico é constante, entramos em uma frequência emocional de stress, que ao se tornar crônico nos transformará em crianças inseguras, irritadiças, agressivas e sem recursos para estabelecer relações minimamente saudáveis com o nosso semelhante. O abandono emocional acarreta transformações dificilmente reversíveis em nossa constituição social e afetiva. Para nos proteger da ameaça do abandono, o cérebro aprende a assumir a capacidade de pensar individualmente e esperar o pior de todas as situações. Ao sermos negligenciados na infância, interpretaremos as adversidades pessoais como catástrofes e as catástrofes alheias como adversidades externas que não os dizem respeito. A presença de uma rede de sustentação afetiva nos torna capazes de construir relações sociais mais saudáveis e íntegras, nas quais seremos capazes de atuar pelo bem coletivo acima dos interesses individuais.
O sentimento de amor e afeto é construído até os dois anos, aproximadamente, em nosso contato com a figura materna e afeta diretamente o nosso desenvolvimento cognitivo, tanto intelectual quanto emocional. Entre os dois e doze anos, mais ou menos, nosso comportamento vai se modificando em conformidade com a nossa inserção nos círculos sociais de convivência. Nossa maneira de interagir com o mundo refletirá um intrincado mosaico formado pelos valores assimilados até os dois anos e sua mescla, advinda das relações com os pais, os irmãos, demais familiares, vizinhos, colegas da creche e posteriormente da escola e outros locais de convivência. Assim, o nosso núcleo afetivo será ampliado e sofrerá modificações à medida que somos submetidos a situações emocionais relativas a prazer, frustração, tolerância e flexibilidade.
O nosso processo de formação e enriquecimento afetivo está diretamente relacionado à nossa capacidade de atuar segundo um conjunto de valores que leve em conta o bem ou o sofrimento da coletividade. Quanto mais amadurecidos formos, maior será a nossa condição de deslocar o desejo centrado na satisfação rápida e pessoal, para a disposição em conquistar objetivos que acolham os interesses dos nossos semelhantes, além dos nossos.
A partir do momento em que formos capazes de abandonar a miragem da felicidade embasada unicamente nas conquistas materiais e individuais, estaremos libertos do peso da competição, da exposição, da obrigação de possuir tantas coisas que de tão perecíveis, transformam-se em lixo, antes que tenhamos tempo de consumi-las completamente.
Enquanto não nos incomodarmos com esse nosso comum perfil social irresponsável, continuaremos a cultuar um comportamento e pensamento heterônomos. Continuaremos seguindo normas apenas para nossa autoproteção, por receio das eventuais punições ou pelo desejo de termos nossa obediência recompensada e premiada. Seguiremos como fantoches, sem compreender o real valor de agir corretamente por princípio, por sermos moralmente responsáveis por nós e pelos que nos cercam, aqui do lado ou lá no outro extremo do mundo.
Já é hora de ambicionarmos a conquista da autonomia moral, sob cuja ótica nossos atos sejam planejados considerando as consequências para todo o povo do planeta; os que vivem agora e os que ainda nem nasceram. É urgente e necessário adotarmos uma conduta cuja principal característica seja o compromisso com valores universais. É inadiável aprendermos a conviver harmonicamente, não apenas com as leis sociais; mas, principalmente com as leis naturais que garantem o equilíbrio do universo. É preciso quebrar a casca impermeável do individualismo e compreender que enquanto não pudermos ser felizes no plural, o singular não terá direito à nenhuma felicidade real.
Via OBVIOUS
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