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Produção literária judaica na medievalidade: O período anterior a Idade de Ouro

Num primeiro momento, é importante ressaltar que a vida cultural dos judeus na medievalidade espanhola geralmente é duvida em três períodos, a saber: o domínio do califado de Córdoba, referente aos séculos X e XI; o período correspondente aos séculos XI e XII, caracterizado pelo desmembramento do califado em reinos, que receberam o nome de “taifas”; e, por fim, os séculos XIII e XV, marcados, essencialmente, pelo domínio do cristianismo. O presente texto abordará a produção cultural, sobretudo a poesia, dos judeus no primeiro período, referente ao processo de formação da literatura hebraico-espanhola, cuja viabilidade foi, em grande parte, efetivada pelo apoio do mecena Hasdai Ibn Shaprut, o vizir (ministro e conselheiro) do califa Abd al-Rahman III.  

Shaprut acumulou diversas funções (estadista, financista, diplomata e médico) e estimulou, de forma categórica, a produção cultural judaica ao acolher poetas e pensadores em sua corte, sendo que os principais foram Dunash ben Labrat e Menahem bem Saruq. Não obstante, antes de adentrar nas contribuições dos escritores supramencionados, é premente explicar a influência da figura do filósofo Saadia Gaon, chefe da Escola de Sura, para a literatura judaica no período pré Idade de Ouro (séculos X e XI), já que o próprio Dunash ben Labrat foi um importante discípulo de Saadia e incorporou muitos aspectos do estilo do seu mestre. Ademais, conforme ressalta Zipora Rubinstein[1], até a metade do século X, a cultura judaica era “um apêndice, sem grande expressão, do importante centro cultural judaico da Babilônia, com suas famosas academias rabínicas de Sura e Pumbedita” (KIRSCHBAUM, 2008, p. 43). 

Saadia bem Yossef nasceu na cidade egípcia de Dilaz (distrito de Fayyum), em 882. Em decorrência de sua capacidade intelectual e de sua crescente influência, ocupou a posição de gaon de Sura em 928. “A vida de Saádia foi uma longa cadeia de contínua atividade literária. Não há um ramo de estudo judaico em que ele não tenha tido participação destacada, não se excetuando o de gramática e lexicografia” (KIRSCHBAUM, 2008, p. 32). O pensador em questão também se destacou pela sua oposição aos caraísmo, corrente judaica contrária ao judaísmo rabínico e aos aspectos da tradição oral. Valendo-se de certos elementos do Kalam Mutazilita[2] (Teologia racional islâmica),  escreveu uma teologia sistemática em árabe contra os gnósticos e caraítas. A filosofia de Saadia é eclética, visto que engloba certos traços do aristotelismo, do modelo do cosmos ptolomaico e valores judaicos. Diante dos fatos supracitados, Julius Guttmann escreve:

 Não apenas na filosofia, como em outros domínios da ciência medieval judaica, Saádia atuou como pioneiro. Foi um dos pais da filologia hebraica. Sua tradução da Bíblia para o árabe e seus comentários estabeleceram os fundamentos da exegese bíblica científica entre os judeus rabanitas. Nos estudos talmúdicos, abriu igualmente novos caminhos por meio de sua apresentação sistemática de certos temas (…) A principal obra filosófica de Saádia combina a exposição de seu próprio sistema com a crítica aos pontos de vista oponentes, entre eles estão o triunitarismo cristão, o dualismo zoroastriano, a teoria muçulmana da revelação bíblica, os ataques racionalistas à ideia de revelação, bem como todas as doutrinas cosmológicas, psicológicas e filosóficas opostas aos ensinamentos do judaísmo. (GUTTMANN, 2003, p. 83)

Além de sua produção filosófica, é premente destacar sua contribuições para a gramática e lexicografia, sobretudo, em seu dicionário hebraico Agron, dividido em duas partes. “Na primeira parte, as palavras eram dispostas em ordem alfabética de acordo com suas iniciais; na segunda, de acordo com as letras finais” (KIRSCHBAUM, 2008, p. 32). A segunda edição ampliada do dicionário contou com uma introdução e uma tradução das palavras em árabe. Saádia explicitou a regra gramática adotada em seus escritos, a saber: a divisão das letras do alfabeto em duas classes, onze letras passíveis de utilização como raízes e sufixos ou prefixos e um outro grupo composto por letras que só podem servir como raízes. Ademais, o escritor da Escola de Sura foi responsável pela introdução da poesia litúrgica em hebraico.

A poesia de Saádia Gaon retrata sua filiação ao purismo bíblico, isto é, a primazia do estilo da Bíblia como exemplo de beleza e clareza em detrimento da linguagem do Talmud, que engloba elementos e traços do aramaico, do árabe e do judeo-árabe. Nesse sentido, para o pensador em destaque o hebraico bíblico deveria ser utilizado, em última instância, como fundamento para as inovações linguísticas. A produção cultural e a ênfase ao hebraico bíblico[3] presente nos escritos de Saadia podem ser considerados uma ponte de ligação entre o poema litúrgico e a poesia judaica espanhola. Diante disso, acerca do chamado “renascimento do hebraico na medievalidade”, escreve Waxman:

O primeiro fenômeno notável que podemos notar no começo desse período de atividade literária, é o renascimento do hebraico como veículo de literatura, e um crescente interesse na linguagem que, por fim, levaram ao estudo científico de sua estrutura, o desenvolvimento de sua gramática, e uma atividade lexicográfica sistemática. Este renascimento abriu o caminho para a literatura, para expressão poética, para uma escrita fina e elegante, e elevou o hebraico ao nível de uma linguagem literária de primeira classe. (WAXMAN, 1960, p. 158)

Após uma breve exposição acerca das contribuições de Saádia Gaon para o renascimento do hebraico bíblico, é importante retornar à explicação acerca da produção cultural judaica na península ibérica. No início do século X, os judeus começaram a adotar, gradualmente, os costumes árabes e receberam a permissão para a prática de uma série de ocupações, tais como: posse e cultivo de terras; administração de vinhedos e olivas e trabalho em oficinas, medicina, produção têxtil, comércio e serviço público. Ademais, os judeus passaram a construir sinagogas e as comunidades cresceram e prosperaram mediante a fruição de uma relativa autonomia sob o domínio muçulmano. Acerca da passagem do conhecimento talmúdico da Babilônia para a Espanha, Saul Kirschbaum afirma:

Gradualmente, no entanto, a hegemonia do conhecimento talmúdico passou da Babilônia para a Espanha – onde também foram constituídas academias (Córdoba, Lucena, entre outras) -, e a liderança passou do exilarca e dos gueonim orientais para líderes locais; o surgimento desses líderes sem caráter de ancestralidade ou sacralidade é atribuído exatamente ao sucesso dos grandes centros na Babilônia e na Terra de Israel (…) um líder dessa espécie costumava ser chamado de naguid (príncipe). (KIRSCHBAUM, 2003, p. 38)

Conforme destacado anteriormente, é no contexto de relativa autonomia dos judeus durante o reinado muçulmano na península ibérica que a formação da literatura hebraico-espanhola adquire certa influência na produção cultural medieval. Nessa conjuntura, o saber judaico se insere no contexto árabe e obtém, assim, certa independência do aramaico. Desse modo, os sábios e intelectuais, profundamente marcados pela poesia árabe, favoreceram uma flexibilidade maior ao hebraico, dinamizando-o e, por conseguinte, enriquecendo o idioma. Em meio ao cenário de deslocamento do centro espiritual do judaísmo da Babilônia para a Espanha, a figura de Dunash ben Labrat ocupa certa proeminência.

Para Dan Páguis[4], a chegada de Dunash em Córdoba marca o início da chamada “inovação essencial”, caracterizada, essencialmente, pelo aparecimento da poesia secular em árabe. Dunash nasceu em Marrocos no ano 920 e viveu em Bagdá, local onde sua formação intelectual foi influenciada, de forma categórica, pelo seu mestre Saádia Gaon. A inovação primordial de ben Labrat reside na adaptação da métrica quantitativa (distinção entre sílabas breves e longas presente na língua árabe) para a poesia hebraica. Na concepção de Zipora Rubinstein, tal adaptação apresenta como traço crucial a artificialidade, visto que, em certos casos, há a exigência da utilização de concessões específicas e licenças poéticas determinadas para realizar a correspondência do verso ao metro. Num primeiro momento, a postura iconoclástica de ben Labrat, que se expressava em seus poemas seculares em hebraico marcados pelas métricas quantitativas árabes[5] e pela ornamentação retórica, foi recebido com uma determinada rejeição por parte da comunidade judaica. Não obstante, o novo estilo de poesia não pôde ser contido. Segundo Altman, “o nascimento da nova poesia hebraica foi um ato de assimilação competitiva” (KIRSCHBAUM, 2003, p. 47).  

Ademais, é importante ressaltar a ambivalência de ben Labrat, visto que sua paixão pelo purismo bíblico e pelas Escrituras coexiste com seu interesse e admiração pela literatura árabe. A ambivalência supracitada também é revelada no campo ético, já que sua produção poética é divida em textos com temáticas religiosas e poemas com referências ao “vinho, a alegria, a celebração da vida”, enfim ao “espírito dionisíaco”. Acerca desse aparente conflito de lealdade, assinala Ross Brann:

Os poetas hebreus se prostravam ante uma consciência literária problemática. Eles estavam cientes de seu afastamento abrupto das normas hebraicas em um movimento arabizante, mas, ao mesmo tempo, queriam, ansiosamente, ser identificados como herdeiros da tradição literária do antigo Israel. Colocando isso de outra forma: a poesia hebraica andaluza é um híbrido literário. Seu verso de vanguarda reflete as normas adaptativas sub-culturais dos intelectuais judeus, mas essa poesia se enraíza, através da linguagem, imaginário e associações, no texto mais tradicional, a Bíblia hebraica. (BRANN, 1987, p. 128)

Finalizadas as considerações acerca de Dunash ben Labrat, é premente a exposição acerca de Menahem ben Saruq, secretário e poeta de Hasdai Ibn Shaprut. Além disso, ficou conhecido como o estudioso que iniciou os estudos gramaticais e lexicográficos hebraicos na medievalidade espanhola. Foi responsável pela composição do primeiro dicionário bíblico em hebraico, o Mahberet, a pedido de Ibn Shaprut. O dicionário recebeu duras críticas de Dunash. Não obstante, é considerado como uma grande contribuição para a exegese. Menahem foi eminente para a poesia secular na Espanha. “Menahem merece também crédito por ter sido o primeiro a descobrir a forma básica da poesia bíblica, o paralelismo (…)” (KIRSCHBAUM, 2003, p. 58). Acerca das críticas de ben Labrat ao dicionário de ben Saruq, Waxman comenta:

O ataque de Dunash contra o dicionário de Menahem despertou vivo interesse nos círculos eruditos. Estes logo se dividiram em dois campos, mas parece que o de Menahem era mais numeroso. Três de seus discípulos, Isaac Ibn Gikatilia, Ibn Kapron, e Judá ibn Daud Haiuj, publicaram uma réplica contra a crítica de Dunash sob o nome de Teshuvot; réplica (…) O livro é prefaciado por uma introdução poética, uma parte é dedicatória a Hasdai ibn Shaprut, e a outra uma crítica geral a Dunash. Isso é seguido por uma introdução em prosa e um ataque a Dunash por sua tentativa de aplicar a métrica árabe ao verso hebraico. Depois dessas observações preliminares, o autor, ou autores, discute os artigos particulares do dicionário de Menahem que tinham sido atacados por Dunash. Eles refutam sua crítica e justificam Menahem. No curso da justificação, trazem muitas observações gramaticais interessantes, que contribuem para a elucidação da teoria gramatical. (WAXMAN, 1960, pp. 171-172)

Apesar de sua grande contribuição para a produção poética hebraica, acabou sendo preso por motivos desconhecidos. Provavelmente, a sua aproximação com os caraítas tenha sido a razão pela qual caiu em desgraça. Em um Shabat, os agentes de seu patrono invadiram a sua casa e o espancaram. Após a humilhação, foi levado para o cárcere. Na prisão, compôs um texto poético de defesa de sua inocência, valendo-se de uma linguagem bíblica e de um tom apaixonado. Não obstante, sua defesa não teve êxito.

Diante dos fatos supracitados, percebe-se que, no período referente aos séculos X e XI, houve a formação da literatura hebraico-espanhola mediante a produção poética de escritores eminentes como Dunash ben Labrat e Menahem ben Saruq. A composição de poemas seculares em hebraico, a utilização das métricas quantitativas árabes, a ornamentação retórica e temática e , por fim, os estudos gramaticais e lexicográficos caracterizam a chamada pré-Idade de ouro da cultura judaica na medievalidade espanhola.

Referências

BRANN, Ross. Judah Halevi: The compunctious Poet (pp. 123-143). In: Proof Texts- A journal of Jewish Literary History. Vol. 7. Nº 2, New York: The Johns Hopkins University Press, may 1987.

GOLDENBERG, Esther. Hebrew language: Medieval. In: Encyclopaedia Judaica, CD-ROM Edition version 1.0. Israel: Judaica Multimedia Ltd., 1997.

GUTTMANN, Julius. A filosofia do judaísmo. Tradução por J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2003.

KIRSCHBAUM, Saul. Presença judaica na Idade Média Ibérica: a poesia laica e o idioma hebraico. São Paulo: Targumim, 2008.

PÁGUIS, Dan. Hebrew poetry of the Middle Ages and the Renaissance. With a foreword by Robert Alter. Berkeley and Los Angeles: University of California Press. 1991.    

RUBINSTEIN, Zipora. Shem Tov de Carrión: um elo entre três culturas. São Paulo: Edusp, 1993.

WAXMAN, Meyer. A History of Jewish Literature. Cranbury, New Jersey/ London: Thomas Yoseloff, 1960.


[1] Cf. RUBINSTEIN, Zipora. Shem Tov de Carrión: um elo entre três culturas. São Paulo: Edusp, 1993, p. 19.

[2] “No que diz respeito às suas teses fundamentais, Saádia apoia-se no Kalam. Como outros seguidores judeus do Kalam, inclina-se para a sua versão Mutazilita, que atende às concepções judaicas quer no seu estrito e inflexível tratamento do conceito da unidade de Deus quer na sua insistência na doutrina do livre-arbítrio (…) Sua doutrina do relacionamento entre razão e revelação, aceita pela maioria dos filósofos judeus que o sucederam, constituiu o fundamento metodológico de sua filosofia da religião (GUTTMANN, 2003, p. 84).

[3] Acerca do renascimento da escrita em Hebraico provocado por Saadia Gaon, escreve Esther Goldenberg: “foi Saádia Gaon quem provocou o grande renascimento da escrita em hebraico na Babilônia. Na verdade, mesmo antes de seu tempo o uso do hebraico na escrita não tinha sido completamente deixado de lado. Na Terra de Israel tinha havido poesia litúrgica, midrashim e coleções de decisões legais (…) Saádia Gaon introduziu a escrita da poesia litúrgica em hebraico na Babilônia (…) Saádia trouxe uma consciência da necessidade de beleza na escrita em hebraico. Na introdução de seu dicionário, o Agron, ele se refere ao hebraico como uma mulher que foi desprezada quando os filhos de Israel preferiram as imperfeitas linguagens estrangeiras do exílio à sua própria beleza de expressão. O Agron foi projetado para moldar o hebraico como um instrumento apropriado para a escrita de poesia. Costuma-se dizer que a linguagem de Saádia é um elo na cadeia que conecta a linguagem dos piutim e a linguagem da poesia judaica espanhola (GOLDENBERG, 1997).  

[4] Cf. PÁGUIS, Dan. Hebrew poetry of the Middle Ages and the Renaissance. With a foreword by Robert Alter. Berkeley and Los Angeles: University of California Press. 1991.    

[5] “Mas a adoção consciente do estilo bíblico com o estilo literário da poesia secular teve a cultura árabe como um forte elemento de influência. Os árabes sempre deram muita importância à língua e, sobretudo, à linguagem do Alcorão, que eles consideravam não apenas o livro que continha a sagrada doutrina de sua fé, mas também o exemplo supremo do estilo árabe, o modelo que estava acima de qualquer crítica e que se impunha como padrão estético a ser imitado pelos escritos e poetas. Durante a pacífica convivência entre judeus e muçulmanos em al-Andalus, os judeus passaram a admirar os padrões da poesia árabe urbana do período do califado de Córdoba e das taifas, adotaram seus temas seculares, seus tropos, seus gêneros, sua métrica” (RUBINSTEIN, 1993, pp. 107-108).

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