Poesia Hebraica na medievalidade: Pós-Idade de Ouro

Poesia Hebraica na medievalidade: Pós-Idade de Ouro

O período pós-clássico da literatura hebraica na Península Ibérica compreende um processo histórico de enfraquecimento da influência árabe e de expansão do domínio cristão[1]. Conforme aponta Zipora Rubinstein[2], o período supramencionado pode ser abordado a partir de dois aspectos, quais sejam: uma investigação que qualifica a época em análise como um estágio de decadência e epigonismo, já que a produção poética hebraica se vinculou aos padrões da poesia árabe e, por outro lado, um análise que compreende tal estágio literário como um potencializador de inovações e mudanças, dentre as quais o desenvolvimento da mahbarah e da narrativa em prosa rimada, dotada de uma heterogeneidade de temáticas e formas. Diante disso, destaca Saul Kirschbaum (2008, p. 62):

Se é verdade que os eruditos judeus da Espanha e da Provença desempenharam um papel importante como intermediários e transmissores da cultura oriental no final da Idade Média, devemos levar em conta que ao mesmo tempo em que atuam como tradutores de obras científicas ou de entretenimento, do árabe para o latim ou para as línguas românicas, a serviço de governantes europeus, eles também assimilam as influências europeias na poesia hebraica.

Sob essa perspectiva de afirmação da assimilação e influência, a poesia hebraica do período pós-clássico passa se valer, basicamente, de duas fontes primordiais, a saber: a tradição andaluza (preservada como um modelo de conjugação de elementos hebraicos e árabes num todo sintético em que os componentes árabes já não tão passíveis de diferenciação) e a produção literária cristã, sobretudo as poesias trovadorescas e das poesias épicas em línguas neolatinas. Nesse sentido, ao explicar o período em análise,  David Stern (1993, pp. 111-112) comenta que, para Dan Páguis[3], a poesia da época:

Elaborou uma síntese da precedente tradição andaluza com as novas influências de seu próprio ambiente histórico- entre eles, as da poesia trovadoresca popular espanhola e provençal, e a crescente importância da ciência e da filosofia- e tanto reflete as mudanças sociais sofridas pelos judeus, como se tornou um instrumento útil e flexível para funções extra-poéticas, como crítica social e debate filosófico. A poesia hebraica da Espanha cristã teria sido, essencialmente, uma reação contra as tendências extremas da poesia da Idade de Ouro; os poetas desse período rejeitaram o purismo bíblico de seus predecessores e expandiram o escopo de sua linguagem poética e também de seus temas e gêneros.

Conforme aponta Waxman[4], a idade de Ouro da produção poética espanhola encerra com Moisés Ibn Ezra. O período pós-clássico da poesia hebraica ibérica é composta por vários escritores, dentre os quais, os principais são Judá bem Solomon Al-Harisi, Abraham Ibn Ezra, Todros Abulafia, Shem Tov de Carrión, Moisés Maimônides, Moshe ben Nachmânides e Hasdai Crescas. Por certo, em termos literários, o maior expoente da época em análise foi Al-Harisi. Nasceu em 1165, provavelmente em um local próximo à Barcelona, cidade em que recebeu maior parte de sua educação, visto que se tratava de um lugar propício para o desenvolvimento cultural. Mesmo jovem, já dominava algumas línguas, como o hebraico e o árabe. Em razão de sua inquietude e de sua paixão pela novidade, realizou uma viagem pela região de Provença, na qual o ensino judaico começava a apresentar sinais de desenvolvimento. “As comunidades judaicas da região estavam ávidas por conhecimento, e apareceram muitos patronos desejosos  de pagar bem pela tradução para o hebraico de livros judaicos escritos em árabe” (KIRSCHBAUM, 2008, pp. 64-63). É nessa conjuntura que Harisi se insere, valendo-se da literatura como profissão e fonte de renda. Traduziu até mesmo o comentário de Moisés Maimônides sobre a Mishná. Não obstante, em 1205, decide retornar para a Espanha, mais especificamente em Toledo. Não conseguiu, entretanto, se fixar permanentemente na região ibérica. Desse modo, partiu para uma viagem pelo Oriente, passando pela Palestina, Babilônia e Egito; visitando, durante o percurso, diversas comunidades judaicas, sendo bem recebido por elas. Ademais, enquanto realizava sua jornada, escreveu o Tahkemoni (livro de sabedoria), “uma sátira caleidoscópica como a de Hariri, mas de caráter puramente judaico, um ataque à pompa nos novos-ricos” (KIRSCHBAUM, 2008, pp. 65-66).

Numa perspectiva geral, Harisi pode ser qualificado como poeta secular. As temáticas de seus escritos são heterogêneas. Escreveu canções báquicas, poemas humorísticos, poemas de amor, poemas de engrandecimento moral, poemas litúrgicos e poemas sobre o caraísmo (tanto produções contra como a favor). Ademais, escreveu um tratado de medicina. Por fim, é premente frisar a influência de Yehuda Halevi nos escritos de Al-Harisi.

Abraham Ibn Ezra (1093-1167) foi um importante comentador bíblico, além de astrônomo e filósofo, cujos pensamentos não se encontram dispostos de forma sistemática. Uma importante contribuição do escritor em questão foi sua harmonização dos princípios da religião judaica com o campo científico e com os estudos filosóficos. Ademais, é importante considerar que, para alguns estudiosos, Ibn Ezra é considerado o quinto poeta da Idade de Ouro.

Dotado de mente privilegiada aliada a um espírito crítico, Ibn Ezra explorou e se destacou em praticamente todas as ciências da época. Além de profundo estudioso e conhecedor da Torá, era também um grande exegeta, poeta litúrgico e secular, filosofo, gramático, tradutor, matemático, médico e astrólogo. Para ele, não havia conflito entre ciência e religião, pois considerava que a ciência e a astrologia constituíam a base dos ensinamentos judaicos (…) Coabitavam nele harmoniosamente o sábio da Torá e o filósofo, o médico, o astrólogo, o racionalista e o místico. Ibn Ezra acreditava que a mais importante atividade do homem era buscar e conhecer D´us. Para ele, a Revelação Divina e a razão eram perfeitamente congruentes, não havia discrepância entre fé e misticismo judaico e as ciências naturais ou exatas. Rabi Ibn Ezra acreditava na interpretação dos sonhos, nas propriedades místicas dos números, na astrologia e na matemática como ciências exatas. Acreditava que as estrelas e os planetas influenciavam a vida e o destino dos homens. Seus conhecimentos em astrologia e astronomia, bem como seus dons matemáticos, garantiram-lhe grande fama entre todo tipo de pessoas[5]

Além de Al-Harisi e Abraham Ibn Ezra, Todros Abulafia (1247-1306) foi um importante escritor do período pós-clássico da literatura hebraica espanhola. Sua carreira pode ser caracterizada como eclética. Foi um grande conhecedor da literatura árabe. Ademais, chegou a exercer até mesmo cargos burocráticos[6] como coletor de impostos e enviado diplomático. Quanto ao aspecto poético, “Todros Abulafia reinventou, subverteu ou simplesmente rejeitou muitas das convenções formais da época andaluza. Sua poesia, como veremos, se aproxima do gênero de Cantigas de Escárnio e Maldizer (…)” (KIRSCHBAUM, 2011, p. 151). Acerca das Cantigas de Escárnio e Maldizer[7], é premente destacar que elas possuem um lugar de destaque no cancioneiro medieval castelhano e constituem um dos grandes gêneros da produção poética galego-portuguesa. Um dos maiores escritores do gênero supramencionado foi o próprio rei Afonso X.

[…] a máis receptiva das cortes peninsulares foi, sen dúbida, a de Afonso X, poeta mariano pero tamén autor de cantigas de amor, de cantigas de amigo e sobre todo de cantigas de escarnio e de maldicir coas que tomaba parte nas disputas, nos debates e nos altercados en verso para os que facía de teatro o seu palacio, concorrendo cós seus hóspedes á hora de lanzar reprobacións contra cortesãs e ricos homes, xograres e trobadores, pero compoñendo tamén sátiras políticas mordaces e elaborando críticas corrosivas contra vasalos infieis e cabaleros medoñentos, e sen aforrarllas nin ó papa, ó que acusa de inxerencias (que el considera indebidas) na designación do arcebispo de Santiago, pero que ós ollos do rei era culpable sobre todo de opoñerse á súa candidatura á sucesión imperial. (LANCIANI; TAVANI, 1995, p. 66)

Além de certa semelhança com as Cantigas de Escárnio e Maldizer, a produção poética de Todros Abulafia é caracterizada pela utilização de citações bíblicas fora de seu contexto originário, as quais passam a adquirir um sentido sarcástico e inesperado. Em termos gerais, pode-se afirmar que as citações bíblicas são tiradas de seu contexto usual para fins imprevistos. Além disso, escreveu poemas amorosos e de auto humor. Outro poeta eminente para o período pós-clássico foi Shem Tov de Carrión, autor que, se valendo das técnicas retóricas e dos recursos linguísticos da época, teve uma produção literária heterogênea, cujos traços tipificaram, de certa forma, uma síntese entre os elementos das culturas árabe, hebraica e cristã.

No aspecto filosófico, podemos destacar Moisés Maimônides (1138-1204) e Moshe ben Nachmânides (1194-1270). Em relação a Maimônides, é importante frisar sua perspectiva aristotélica e seus estudos no campo da metafísica. No campo exegético, ele se utilizou da interpretação alegórica para uma análise de determinadas passagens bíblicas. Ademais, na dimensão teológica, ficou conhecido pela teologia apofática e pela metafísica negativa. Uma de suas afirmações primordiais consistia na assertiva segundo a qual não é possível conhecimento positivo da essência de Deus. Seu pensamento rompeu com a concepção de corporeidade divina, rejeitando uma ideia “antropomórfica” do Criador e afirmando a unidade, simplicidade e incorporeidade de Deus. Não obstante, para Maimônides, é possível a realização de afirmações positivas sobre as qualidades do fazer divino, ou seja, dos atributos de suas ações. Além de um importante filósofo, o pensador em questão é considerado um grande talmudista. Acerca da principal obra de Maimônides, “O Guia dos Perplexos”, escreve Julius Guttmann (2003, p. 184):

Como já expressa o título dessa obra, ela procura conciliar a aparente contradição entre a filosofia e a revelação e servir de guia para aqueles que, em vista dessa contradição, chegaram a duvidar ou da filosofia ou da religião. Mas esse empenho em estabelecer a unidade da religião e da filosofia não foi visto como uma conciliação de dois poderes opostos (…) ele não julgava que a filosofia fosse algo alheio ou externo à religião, mas que necessitava de certos ajustes e adaptações para efetivar essa conciliação (…) A filosofia é antes um meio, na realidade o único meio para a apropriação interna do conteúdo da revelação.

Sob essa perspectiva, Maimônides compreendia que a busca da contemplação intelectual de Deus era um dever central. Por fim, cabe ressaltar a figura de Nachmânides, um importante filósofo, médico, rabino e talmudista. Ficou conhecido também pela sua vinculação ao misticismo rabínico[8]. No ano de 1263, ele se envolveu em uma disputa na cidade de Barcelona contra um frade dominicano. Em termos gerais, a disputa girava em torno do messianismo. Apesar da forte pressão contra o judaísmo, o rabino teve a proeza de não ser derrotado. Como o rei acompanhou a controvérsia, ele se surpreendeu com o esforço argumentativo de Nachmânides, concedendo-lhe um salvo conduto. Não obstante, temendo uma repressão católica, o talmudista deixou a Espanha e se fixou na Palestina, onde fundou uma escola religiosa.

Referências

BEN-SASSON, Haim Hillel. The Middle Ages In: A History of the Jewish People. Cambridge: Harvard University Press, 1999.

GUTTMANN, Julius. A filosofia do judaísmo. Tradução por J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2003.

KIRSCHBAUM, Saul. Presença judaica na Idade Média Ibérica: a poesia laica e o idioma hebraico. São Paulo: Targumim, 2008.

KIRSCHBAUM, Saul. Todros Abulafia, um Poeta Judeu na corte do Rei Sábio. Revista Signum, v. 12, pp. 147-165, 2011.

LANCIANI, Giulia & TAVANI, Giuseppe. As Cantigas de Escarnio. Salamanca: Ed. Xerais de Galícia, 1995.

MONGELLI, Lênia Márcia. Fremosos Cantares: Antologia da lírica medieval galego-portuguesa. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

NACHMÂNIDES. Morashá, 2000. Disponível em: https://www.morasha.com.br/profetas-e-sabios/nachmanides.html. Acesso em: 10/12/2022.

PÁGUIS, Dan. Hebrew poetry of the Middle Ages and the Renaissance. With a foreword by Robert Alter. Berkeley and Los Angeles: University of California Press. 1991.

RABI ABRAÃO IBN EZRA. Morashá, 2003. Disponível em: https://www.morasha.com.br/profetas-e-sabios/rabi-abraao-ibn-ezra.html. Acesso em: 10/12/2022.

RUBINSTEIN, Zipora. Shem Tov de Carrión: um elo entre três culturas. São Paulo: Edusp, 1993.

WAXMAN, Meyer. A History of Jewish Literature. Cranbury, New Jersey/ London: Thomas Yoseloff, 1960.


[1] Acerca do domínio cristão, Zipora Rubinstein comenta: “por outro lado, a Reconquista continuava sua marcha para o sul pelo vale do Guadalquivir e obrigava os judeus a emigrar e procurar abrigo nos Estados católicos, onde foram acolhidos com boa vontade pelos seus respectivos governantes. E, à medida que a Reconquista ia progredindo, os reis cristãos se viram obrigados a aceitar a organização social e econômica vigente nas terras conquistadas, ou seja, a islâmica; portanto, partes das instituições sociais muçulmanas passaram a integrar a vida pública cristã. E os judeus foram o fio condutor desse processo, pois, conhecendo a língua árabe e tendo desempenhado importantes funções na administração islâmica, constituíam valiosos colaboradores dos novos governantes, que os empregavam como almoxarifes, administradores de rendas, legistas, secretários, cobradores de impostos, etc.” (RUBINSTEIN, Zipora. Shem Tov de Carrión: um elo entre três culturas. São Paulo: Edusp, 1993, p. 28). Ademais, conforme atesta Saul Kirschbaum (2011, p. 149): “os reis cristãos viam os judeus notáveis, familiarizados com a cultura muçulmana, como um importante fator político e cultural; assim, a população judaica seria um elemento altamente desejável no repovoamento das cidades conquistadas, que tinham sido abandonadas em massa por seus habitantes muçulmanos”. Cf. BEN-SASSON, Haim Hillel. The Middle Ages In: A History of the Jewish People. Cambridge: Harvard University Press, 1999, p. 468.

[2] Cf. RUBINSTEIN, Zipora. Shem Tov de Carrión: um elo entre três culturas. São Paulo: Edusp, 1993.

[3] Cf. PÁGUIS, Dan. Hebrew poetry of the Middle Ages and the Renaissance. With a foreword by Robert Alter. Berkeley and Los Angeles: University of California Press. 1991.

[4] Cf. WAXMAN, Meyer. A History of Jewish Literature. Cranbury, New Jersey/ London: Thomas Yoseloff, 1960.

[5] Rabi Abraaão Ibn Ezra. Morashá, 2003. Disponível em: https://www.morasha.com.br/profetas-e-sabios/rabi-abraao-ibn-ezra.html. Acesso em: 10/12/2022.

[6] “No entanto, a influência judaica junto à corte certamente não era bem vista pela Igreja Católica. Em janeiro de 1281, em um Shabat, por pressão do bispado (que com isso esperava poder forçar os judeus a se converterem), o rei fez cercar grande parte dos judeus de Castela ainda na sinagoga – Todros entre eles – e ordenou sua prisão, com confisco de bens. Não se conhecem as circunstâncias, mas o poeta conseguiu ser libertado depois de alguns meses, recuperou seu patrimônio e voltou a trabalhar para Afonso; manteve seus laços com a corte de Castela: após alguns anos (1289) ainda aparece em posição de certa proeminência junto a Sancho IV, filho e sucessor de Afonso, e mais tarde encabeçou um grupo de financistas judeus beneficiado com importantes monopólios” (KIRSCHBAUM, 2011, pp. 154-155).

[7] “[…] essas cantigas constroem-se nas fronteiras do cômico, com todas as nuanças que o moldam, da ironia sutil ao riso debochado, da zombaria ao sarcasmo, da facécia ao burlesco – numa infinidade de procedimentos e de interstícios que, por isso mesmo, necessita da colaboração do ouvinte/espectador para realizar-se plenamente” (MONGELLI, 2009, p. 183).

[8] “Aprofundou-se na Cabalá, pois era fascinado pelos ensinamentos místicos segundo os quais cada palavra e cada letra da Torá continham os segredos mais profundos da Criação. Seu objetivo era aproximar a Cabalá da corrente principal do judaísmo ortodoxo, especialmente na Espanha. Nachmânides tornou possível aos cabalistas traçar a origem de suas ideias à Torá e ao Talmud, mantendo as melhores e mais antigas tradições judaicas. Apesar de nenhum de seus trabalhos ser especificamente cabalístico, ele faz alusões completas ao sistema, sobretudo no comentário da Bíblia (…) Enquanto Maimônides explicava o judaísmo pela razão e lógica, Nachmânides o explicava pelo sentimento e afirmava que certas partes da Tora escapam à qualquer explicação racional. A Torá e o Talmud constituem a autoridade suprema mesmo quando seu ensinamento parece contrariar o ensinamento da filosofia. “Aprender com anciãos é beber um velho vinho amadurecido pelos anos”, teria dito. Para Nachmânides três idéias são fundamentais: acreditar na Criação, na omnisciência de D’us e na Providência Divina. Corpo e alma, ambos oriundos de D’us, são igualmente bons. Adepto das doutrinas místicas e da Cabalá, é a estas que recorre para explicar certos antropomorfismos bíblicos (atribuir a D’us formas ou atributos humanos, para facilitar a compreensão de conceitos espirituais). Seus comentários eram claros, simples e repletos de devota instrução” (NACHMÂNIDES. Morashá, 2000. Disponível em: https://www.morasha.com.br/profetas-e-sabios/nachmanides.html. Acesso em: 10/12/2022).

Deixe seu comentário