O dia 16 de maio pode vir a ser lembrado como um divisor de águas no conflito entre Rússia e Ucrânia, não por encerrar hostilidades, mas por inaugurar uma nova fase, onde diplomacia, interesses regionais e grandes jogos de poder se sobrepõem às trincheiras. Em Istambul, Rússia e Ucrânia sentaram-se novamente à mesa de negociações. O fato de isso ter acontecido já é, por si só, digno de nota. Mas a maneira como tudo se desenrolou e os bastidores desse reinício revelam muito mais do que o noticiário superficial costuma mostrar.
Comecemos pelo essencial: o retorno das conversas entre Moscou e Kiev só foi possível graças a uma intensa mediação do presidente turco Recep Tayyip Erdogan. O que parecia improvável aconteceu, e não sem resistência. Zelensky precisou ser convencido, durante três horas, a autorizar um gesto que rompeu com sua própria política interna: permitir que autoridades ucranianas dialogassem diretamente com representantes russos. Esse recuo não foi um sinal de fraqueza, mas sim de pragmatismo. Num cenário em que a Ucrânia vê sua margem de manobra cada vez mais estreita, a flexibilidade se tornou uma necessidade.
Ainda assim, é evidente que o caminho é estreito. Moscou repetiu suas exigências máximas: a retirada das tropas ucranianas das regiões do leste e sul anexadas pela Rússia, uma exigência inaceitável para Kiev, mas colocada à mesa, como se fosse ponto de partida e não de chegada. A própria duração do encontro (pouco mais de uma hora e meia) mostra os limites atuais dessas tratativas. Mas, como sabemos, na diplomacia, o simbolismo conta tanto quanto o conteúdo.
A postura da Turquia merece especial atenção. Erdogan, em sua política de múltiplos vetores, reafirma-se como um ator central não só na guerra ucraniana, mas também no reposicionamento geopolítico do Oriente Médio. Ao atuar como ponte entre Washington e Damasco, promover o fim das sanções americanas contra a Síria e colher os frutos da dissolução do PKK, Erdogan reforça seu papel como fiador de estabilidade regional, ao menos na superfície. Ancara, que historicamente transita entre o Ocidente e os interesses euroasiáticos, agora reorienta sua política externa de forma clara para o campo ocidental, sem, no entanto, romper completamente com Moscou.
Essa ambivalência turca não é incoerência, mas estratégia. Erdogan sabe que seu país lucra quando se torna indispensável, e no atual tabuleiro, ele o é. Com relações sólidas tanto com Putin quanto com Zelensky, ele se apresenta como o único líder com canais abertos com ambos, o que explica por que Istambul, e não Genebra ou Bruxelas, tem sido o cenário das negociações.
Outro ator-chave, porém mais enigmático, é Donald Trump. Sua postura oscilante diante da guerra, ora ameaçadora, ora conciliadora, revela mais sobre seus cálculos eleitorais e geopolíticos do que sobre uma real política de Estado. Ainda assim, o fato de apoiar as negociações diretas e manter diálogo com Putin enfraquece o plano do CoW4 (a coalizão formada por Reino Unido, França, Alemanha e Polônia), que tenta assumir o protagonismo da resposta ocidental ao conflito. Para o grupo europeu, a diplomacia russo-ucraniana sem sua participação direta representa um revés, e talvez um alerta.
Na minha avaliação, o maior vencedor desta rodada não foi nem Kiev nem Moscou, mas Ancara. A Turquia saiu do encontro com status de mediadora incontornável, ganhos diplomáticos no Oriente Médio e uma aproximação renovada com Washington. Putin, por sua vez, garantiu que sua proposta de diálogo direto, sem pré-condições, fosse aceita, o que, do ponto de vista simbólico, é uma vitória. Zelensky, mesmo relutante, mostrou que ainda consegue jogar com as peças que lhe restam no tabuleiro.
Mas não devemos nos iludir: a guerra continua. O anúncio da nomeação do general Mordvichev como comandante das forças terrestres russas, feito no mesmo dia em que Putin discutia os rumos das negociações com seu Conselho de Segurança, é prova de que a diplomacia anda lado a lado com a continuidade da ofensiva militar.
Em resumo, Istambul não selou a paz, mas apontou caminhos. São caminhos tortuosos, repletos de interesses conflitantes e manobras arriscadas, mas que, se bem trilhados, podem ao menos desacelerar o relógio da guerra. E, num cenário como este, talvez isso já seja muito.