O Holocausto não ameaçou apenas a existência física dos judeus, mas também do judaísmo como religião” , constata Ariel Finguerman (2012, p. 5). Certamente, o extermínio em massa do “povo escolhido” na Europa nazista ameaçou as bases de uma concepção religiosa centrada num relacionamento com um Deus qualificado como sumamente bom e justo. Diante disso, inúmeros pensadores, como Eliezer Berkovits e Joseph Soloveitchik, empreenderam grandes esforços para a fundamentação de explicações religiosas sobre o fenômeno historicamente inédito do holocausto. Dentre os autores acima destacados, podemos mencionar também Abraham Heschel, rabino, filósofo e ativista dos direitos civis. Em termos gerais, Heschel afirma que a experiência do holocausto suscitou a urgência de um “humanismo sagrado”.
A urgência do humano é um chamado para os homens da “modernidade tardia”. Deve-se destacar que a mera derrota do nazismo não representou a vitória sobre esta doença que é o fenômeno do totalitarismo, o qual se encontra umbilicalmente ligado à lógica da instrumentalização. Nesse sentido, o pensador em questão frisa a imprescindibilidade do resgate de um humanismo. É importante frisar que o humanismo proposto por Heschel dialoga com a concepção de Pascal acerca do homem, compreendido como contraditório e paradoxal. No próprio texto bíblico, o ser humano é apresentado como uma contradição, pois é concebido, ao mesmo tempo, como pó[1], mas, também, como a imagem e semelhança de Deus. Quando o texto bíblico se dirige ao homem, isto é, quando aborda a condição paradoxal do ser humano, é quando as Sagradas Escrituras usufruem de maior eficácia. Ademais, para o rabino, a contradição acima apresentada expressa uma polaridade, um antagonismo que se revela entre uma entidade espiritual, que estamos sempre a nos aproximar, mas não somos capazes alcançar em definitivo na vida presente, e a “animalidade”, que os indivíduos estão sempre a se afastar mediante o aperfeiçoamento de suas potencialidades. A “animalidade” aqui é sinônimo de “satânico”, daquilo que se opõe à dignidade do ser humano. Heschel nos lembra que a noção de “humanidade” é uma construção ética, eminentemente espiritual, a partir de uma realidade biológica. Em suma, eis alguns dos aspectos e nuances do “humanismo sagrado” do autor em análise.
Ademais, dentre outros assuntos centrais da obra de Heschel, podemos destacar as temáticas concernentes à presença de Deus no ser humano e o papel desempenhado pela oração na contemplação da Presença Divina. Seus escritos são fundamentais, especialmente, em função da afirmação da esperança e da religiosidade na contemporaneidade, a despeito das atrocidades do totalitarismo, do universo concentracionário nazista e das injustiças remanescentes do autoritarismo.
A obra filosófica e religiosa de Abraham Joshua Heschel (1907-1972) é um convite ao reencontro existencial e ao espanto radical como mistério profundo que, segundo o filósofo, é o tecido da vida. Heschel convida o homem moderno a dar um salto existencial, de modo a abrir-se para o encontro a Presença Divina. É nesse aspecto de sua obra que ele expõe de modo mais nítido suas origens hassídicas […] Não é à toa que um dos aspectos da obra de Heschel como crítico da modernidade seja justamente o de um convite à abertura ao mistério e à transcendência a partir do reencontro com a dimensão profunda da oração. É nesse aspecto que ele deixa transparecer, de forma mais nítida, suas raízes místico-judaicas. (LEONE, 2003, p. 42-43)
Além disso, a empreitada teórica de Heschel também visava confrontar duas respostas levantadas pela teologia judaica ao holocausto. A primeira, de caráter eminentemente sionista, defendia a chamada “solução nacional”, ressaltando a imprescindibilidade da criação de um Estado militarizado. Por sua vez, a segunda resposta se vinculava aos ideais dos ultraortodoxos, segundo os quais o extermínio em massa realizado pelo totalitarismo alemão representou um castigo divino aos pecados dos judeus. No entanto, a perspectiva da punição divina continha sérios problemas, pois atribuía aos nazistas o status de “instrumentos da justiça de Deus”. Ademais, a compreensão supracitada partia de uma visão anacrônica, pois tomava como ponto de partida a conjuntura do Israel bíblico. Em contraposição às respostas supramencionadas, Heschel compreende o holocausto como o “eclipse da humanidade”, enquanto obscurecimento da razão e da dignidade humana. Nesse sentido, o genocídio efetivado pelo nazistas simbolizou a “saturação”, isto é, o grau máximo do processo de desumanização da modernidade.
Não obstante, é premente reiterar que um eclipse é tão somente um obscurecimento passageiro. A desumanização empreendida pelo totalitarismo pode ser revertida. Heschel encontra na religião, mais especificamente no encontro com a Presença Divina, o meio crucial de retorno à unidade. Eis a esperança do pensamento do autor em análise: a conexão com Deus é um ponto determinante para a restauração da plenitude. O mal é meramente uma aparência ofuscada e deformada do que ainda não foi plenamente redimido. A restauração da unidade simboliza um processo contínuo, cuja realização consistirá na redenção messiânica. A abertura à transcendência seria o contrário da instrumentalização que acompanha a modernidade. Para o pensador místico em análise, a elevação espiritual tipifica um instrumento de efetivação da humanização. Se a essência última do ser humano reside no encontro com a Providência Divina, é justamente na relação com Deus que o homem se realiza completamente. A busca da transcendência é condição necessária para o “humanizar-se integralmente”. Desse modo, afirma Alexandre Leone (2003, p. 50): “Na medida em que implica em envolvimento total da pessoa, a oração é descrita por Heschel como uma forma suprema de oferenda a Deus”. Nesse sentido, a oração tipifica uma forma de sacrifício. Além disso, a oração também constitui um meio para o despertar do ser humano. Trata-se de um veículo para a manifestação da presença divina. “A afirmação de que desde a destruição do Templo em Jerusalém a oração tomou o lugar do sacrifício não implica que o sacrifício tenha sido abolido quando o culto sacrificial deixou de existir. A oração não é um substituto para o sacrifício. Oração é sacrifício” (HESCHEL, 1974a, p. 97).
A humanização, como uma tarefa encarregada ao próprio homem, não deixa de ser um ato sagrado. A abertura ao mistério e o convite à transcendência representam traços essenciais para a superação deste “eclipse da razão”. A Presença de Deus na interioridade individual fundamenta a noção que temos de dignidade humana. Ao tipificar uma forma de emancipação humana, a fé assume a forma de resistência. O desenvolvimento do homem se dá pela ação moral, pela vivência de uma experiência contemplativa e pela percepção constante da Presença de Deus no mundo. A coexistência das três posturas supramencionadas constitui o legítimo amor pela Verdade . Desse modo, constata o pensador:
Honestidade, autenticidade, integridade sem amor podem levar à ruína dos outros, de si mesmo ou de ambos. Por outro lado, amor, fervor, ou exaltação sozinha, pode seduzir a viver num Paraíso alucinado- O Inferno do sábio. É impossível encontrar a Verdade sem estar amando, e é impossível experimentar o amor sem ser verdadeiro, sem viver a Verdade. (HESCHEL, 1973, p. 45)
O sofrimento não é um indício da fragilidade da religião, mas sim uma manifestação da necessidade da restauração e da imprescindibilidade do aperfeiçoamento humano. A grande contribuição de Heschel para a teologia do Holocausto consiste justamente na afirmação do potencial emancipatório e da capacidade de humanização presentes na elevação espiritual e na busca pela transcendência. Por fim, afirma Heschel (1987, p. 112): “A fé do nosso povo em Deus, neste momento da história, não vacilou. Neste momento da história, Isaac foi de fato sacrificado, o seu sangue derramado. Todos nós morremos em Auschwitz, no entanto a nossa fé sobreviveu. Sabíamos que repudiar a Deus seria continuar o holocausto”.
Obras de Heschel
HESCHEL, A. Joshua. Deus em busca do homem. Tradução Professor Albérico F. Souza. São Paulo: Paulinas, 1975.
HESCHEL, Abraham. Israel: an Echo of Eternity. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1987.
HESCHEL, A. Joshua. Los Profetas: El hombre e su vocación. Supervisión de Marshall T. Meyer. Buenos Aires: Paidos, 1973.
HESCHEL, Abraham Joshua. O homem à procura de Deus. São Paulo: Paulinas, 1974a.
Referências
FINGUERMAN, Ariel. A teologia do Holocausto: como os pensadores judeus e cristãos explicaram Auschwitz. São Paulo: Paulus, 2012.
LEONE, Alexandre Goes. A Imagem Divina e o Pó da Terra: Humanismo Sagrado e Crítica da Modernidade em A. J. Heschel. 1.ed. São Paulo: Editora Humanitas, 2002, v. 500. 207p.
LEONE, Alexandre Goes. A Oração como Experiência Mística em Abraham J. Heschel. REVER (Revista de Estudos de Religião), São Paulo, v. 3, n. 4, p. 42-53, 2003.
[1] Cf. LEONE, Alexandre Goes. A Imagem Divina e o Pó da Terra: Humanismo Sagrado e Crítica da Modernidade em A. J. Heschel. 1.ed. São Paulo: Editora Humanitas, 2002, v. 500. 207p.