Numa primeira análise, é premente reiterar as pretensões da filosofia cartesiana, quais sejam: o estabelecimento de um sistema unificado de saberes, a necessidade de um fundamento seguro para as ciências e a direção do método para alcançar um conhecimento inabalável. Diante disso, Descartes, em sua obra “Meditações metafísicas”, toma como ponto de partida a chamada “dúvida metódica”, apresentando razões e argumentos pelos quais podemos aparentemente duvidar de todas as coisas, sobretudo das materiais, ao menos enquanto não estivermos em posso de uma garantia objetiva e segura para a unidade da ciência.
Sob essa perspectiva, Julián Marías afirma que Descartes, na tentativa de construir uma filosofia totalmente certa e imune às nuances da dúvida, adota, de forma preliminar, uma “filosofia da precaução”. Desse modo, a filosofia da precaução nasce do desejo cartesiano de não errar. Nesse sentido, é nítida a insegurança do autor, o qual chega a afirmar que, de início, nada merece uma confiança plena. Para reforçar insegurança, o pensador em questão apresenta três argumentos, a saber: o argumento dos erros dos sentidos, o argumento dos sonhos e, por fim, o argumento do gênio maligno. Em vista disso, percebe-se que a dúvida cartesiana é sistemática, provisória, generalizada e artificial, ou seja, tem um propósito. Dessa forma, afirma Marías ( 2015, p. 231): “É preciso pôr em dúvida todas as coisas, pelo menos uma vez na vida, diz Descartes. Não irá admitir nenhuma verdade de que possa duvidar. Não basta não duvidar realmente dela; é preciso que não reste dúvida nem mesmo como possibilidade. Por isso, Descartes faz da dúvida o próprio método de sua filosofia”.
Além disso, é importante frisar que há nos escritos cartesianos, sobretudo em suas “Meditações”, um movimento de interiorização e introspecção para repensar a metafísica e a física e, portanto, estabelecer uma espécie de “fisioterapia do espírito”, que é manifestada, de forma categórica, no projeto de reconstrução do saber e reeducação do pensamento. Exemplo disso é a presença reiterada de conjunções adversativas, as quais refletem a tentativa de Descartes de apresentar os caminhos que estão sendo trilhados por ele e a postura do autor escutando a si próprio. Diante disso, o pensador se vale de “demonstrações analíticas”.
Desse modo, a tentativa de Descartes é ficar totalmente só, sendo que da própria solidão terá início a reconstrução do processo de alcançar um certeza. É a partir da solidão que se tem início a chamada “filosofia da precaução”. Em vista disso, atesta Marías (2015, pp. 231-232): “O homem fica sozinho com seus pensamentos. A filosofia vai fundar-se em mim, como consciência, como razão, a partir de então e durante séculos, virá a ser idealismo, a grande descoberta e o grande erro de Descartes”. Em sua primeira meditação, percebe-se o caráter metódico da dúvida, visto que ela nasce de uma decisão, ou seja, é engendrada não pela mera experiência, mas por uma postura voltada a um objetivo, distinguindo-se da “dúvida vulgar ou comum”. Ademais, trata-se de uma dúvida hiperbólica, dotada de caráter sistemático e abordagem generalizada, que terá como foco tratar como falso aquilo que é duvidoso; como enganador o que já me enganou ao menos uma vez.
Ademais, a dúvida metódica é passível de verificação na própria estrutura das meditações, isto é, em sua linha argumentativa e cadeia de pensamento, que consiste basicamente na apresentação de uma razão para a postura da dúvida e, logo em seguida, o estabelecimento de uma limitação para o argumento em prol do ato de duvidar, sendo que tal limitação é imediatamente acompanhada por uma outra razão de duvidar, que por sua vez dialoga com a limitação da razão anterior. Na primeira meditação, por exemplo, que apresenta como traços fundamentais a suspensão do juízo e a universalização da dúvida, Descartes estabelece como limite ao argumento dos erros dos sentidos a razoabilidade. A limitação ao argumento dos sonhos reside, por sua vez, nos componentes das percepções sensíveis. Portanto, a construção do pensamento cartesiano expressa o caráter metódico da dúvida.
Diante dos fatos supracitados, podemos afirmar que a dúvida cartesiana é metódica, porque ela representa um instrumento, uma ferramenta de conhecimento, cujo aspecto finalístico é alcançar a verdade segura e inabalável. Além de metódica, a dúvida é universal, generalizada, sistemática e provisória. Insta trazer à baila a consideração segundo a qual a dúvida metódica guarda uma conexão íntima com o método geométrico cartesiano, fundado na ordem das razões.
Para Martial Gueroult, a ordem das razões é um rompimento com a ordem das matérias, típica do realismo aristotélico-tomista. Sob essa perspectiva, afirma Justin Skirry (2010, p. 14): “Descartes rompeu com essa tradição ao argumentar que as coisas imateriais, isto é, não perceptíveis pelos sentidos, tais como a alma e Deus, são mais bem conhecidos do que as coisas materiais ou sensíveis”. O método geométrico consiste basicamente em avançar “passo a passo” de uma verdade para a outra, partindo das verdades mais simples para as mais complexas. Enfim, a dúvida metódica cartesiana encontra suas raízes na tentativa de Descartes de encontrar e estabelecer um fundamento seguro para as ciências. É metódica, pois tipifica um instrumento para alcançar uma verdade inabalável.
Referências bibliográficas
MARÍAS, Julián. História da filosofia. Tradução por Cláudia Berlinder. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
SKIRRY, Justin. Compreender Descartes. Tradução de Marcus Penchel. Petrópolis: Vozes, 2010.