Montaigne, os paradoxos éticos dos Canibais Brasileiros e a crítica ao relativismo moral da civilização europeia

Montaigne, os paradoxos éticos dos Canibais Brasileiros e a crítica ao relativismo moral da civilização europeia

A questão da ética ou das questões éticas envolvem uma análise sistemática complexa que compreende diferentes fatores culturais, abrangendo diversas esferas dentro de uma sociedade. A visão cultural de um determinado local geográfico em  que sua sociedade entende como hegemônica, talvez com exceção de leis éticas universais, as quais, por exemplo, podemos elencar a prioridade da vida humana, tende a influenciar outras culturas e seus respectivos padrões éticos ou a considera-las não coerentes, criando assim uma visão de certo ou errado, justo e injusto, verdadeiro ou falso etc., que inclina a tornar-se divergente quando partimos para a  análise de um contexto mais geral e amplo.

Este processo pode evidenciar um grande problema por parte das sociedades que, teoricamente, detém a certeza de que suas formas, visões, métodos e interpretações são as únicas aceitáveis e corretas, uma vez que tendem a transferir para um conceito ético negativo as ideias daqueles que divergem de determinados espectros.

Assim, chama a atenção a forte crítica realizada por Montaigne em seus ensaios, no que tange aos problemas éticos da sociedade de sua época. Tal conceito de ética vinculado a uma cultura teoricamente superior é um ponto abordado amplamente pelo teórico, que diverge das ideias pré-estabelecidas com relação à ética “dos povos recém descobertos”, de forma aberta, confrontando a suposta ética e moral da sociedade que se compreendia superior.

Neste ponto foi notável o choque cultural criado pelo contato com “os canibais” do Brasil, conforme expressado por Montaigne, que levou os europeus a refletir e a analisar os padrões constantes na estrutura de suas sociedades, seus costumes e suas crenças. A atenção dada à vivência em sociedade, objetivando uma maior assertividade nas relações sociais, tinha como pressuposto questões como igualdade, honra, liberdade, justiça etc.

A moral civilizatória dos europeus da época de Montaigne é um dos grandes problemas analisados pelo pensador, que faz uma apreciação do que é entendido como civilização, chegando a uma análise dos valores da tradição, que parte para um exame de temas complexos do ponto de vista humanístico. A ideia de uma ética e de uma moral por excelências é mais um ponto abordado pelo teórico, que atenta-se à interpretação do que é entendido nesta perspectiva na referida sociedade, a qual compreende como causa primeira uma ética que tem como princípio o seguimento das regras e costumes enraizados.

Dessa forma, conforme a explanação acima expressa, é possível identificar um grande preconceito etnocêntrico por parte dos europeus da época com relação aos até então desconhecidos Tupinambás brasileiros, o que nos leva a um certo relativismo cultural e às suas implicações devidas. Para Montaigne, o modo de vida dos Tupinambás, assim como o dos europeus, estava relacionado à uma prática cultural, sendo que os costumes estavam atrelados ao modo de vida que determinada sociedade pertence, ou seja, a diferença de costumes não constituía um critério válido para julgar as diferenças existentes nas sociedades, mesmo Montaigne sendo crítico ao “canibalismo de honra”, conforme afirmou Lestringant. O paradoxo é que, na Terra dos Tupinambás, “apesar do canibalismo”, além da honra, havia respeito, felicidade e, ainda, não havia fome, miséria e guerras em troca de poder e dinheiro.

Este debate ético e moral deveria ser uma constante na sociedade brasileira e reflexões sobre este pontos deveriam permear os grupos sociais que no País vivem, caracterizando-os dentro de contextos que possam ser compreendidos de forma ampla. Este é um legítimo e atual debate, o qual muitas vezes a sociedade não está atenta.  

Muitos são os fatores culturais que no decorrer das décadas impactaram a formatação de uma ética que talvez pudesse se aproximar daquela que chamou a atenção de Montaigne. A Terra dos Tupinambás de outrora converteu-se em uma terra de vantagens, de malícia, de extorsão; diferente do século XVI, no XX e no XXI “importamos” a experiência da “Europa civilizada”, a economia e o capitalismo passaram a ter singular importância, levando a sociedade a grandes desigualdades, com homens, mulheres e crianças, muitas vezes, abandonados à própria sorte, chegando a ter cidadãos em situação de miséria.

A ética e moral políticas se perderam entrelaçadas por discursos aleatórios, sem prática e distante de um ideal, muitas vezes cheios de inverdades e incoerências, bem distante de um de seus principais objetivos, isto é, o bem coletivo, a coletividade. Assim, o povo, ou seja, a sociedade deixou de ser prioridade

A religião, não obstante, também passou a ter novos parâmetros, por meio dos quais, muitas vezes, igualmente teve sua ética e moral comprometidas. A ética dos que creem atualmente está, na maioria das vezes, relacionada aos benefícios e vantagens da sociedade moderna e ainda é tema quando temos como pressuposto as formas de agir, isto é, em grande parte das ocasiões, muitos daqueles que declaram um determinado tipo de crença, não a segue como deveria, atuando de uma forma totalmente diferente daquela pela qual a sua crença foi formulada.

A barbárie, talvez, seja o ponto mais emblemático que podemos associar na atualidade brasileira ao que foi expresso por Montaigne em sua obra. Com um rosto em forma de caos social, miséria, assassinato de cidadãos, lutas injustas, egoísmo, tortura, covardia, dentre outras tragédias humanas, o Brasil que se desenvolveu e que se apresenta na atualidade muito se diferencia da Terra dos Tupinambás, se aproximando claramente da Europa da época, ou seja, do autoconsiderado “povo civilizado”. Todas essas lacunas representam mudanças significativas em relação aos Tupinambás do século XVI.

Já não se devoram outros seres humanos, mesmo sem vida, é verdade, contudo, por outro lado, de formas violentas variadas, acaba-se com vidas humanas. Ou seja, pesos e medidas diferentes, relativismo.

Na atual conjuntura, e por tudo o que está exposto, todas essas concepções contribuem para a confiança em uma ideia de que já não é mais possível, do ponto de vista ético e moral, a crença de que deste Brasil possa saltar uma outra civilização “elevada à dignidade dos grandes homens da Antiguidade” e que impacte a aldeia global, pelo simples fato de o Brasil ter seguido outro caminho, ter perdido “suas raízes Tupinambás”, sua história e, o mais importante, seus índios (apesar de ainda constar em terras brasileiras a presença de algumas tribos que mantêm uma certa tradição).

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