“Memórias de um sargento de milícias” na biblioteca de Ayacucho

“Memórias de um sargento de milícias” na biblioteca de Ayacucho

Texto escrito em coautoria com Davi Schelotag de Moraes

Manuel Antônio de Almeida (1830-1861) foi um médico, jornalista, político e escritor de grande relevo na sociedade carioca, recebendo elogios por sua genialidade de contemporâneos como Machado de Assis e José de Alencar. Desde jovem Manuel trabalhou com as letras. Traduzindo folhetins franceses para a Tribuna Católica, como forma de custear seus estudos, se aproximou da imprensa e nunca veio a se dedicar à medicina como profissão.

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Sua estreia no jornal onde futuramente iria publicar em forma de folhetim, entre os anos de 1852 e 1853, o livro que o imortalizou na literatura brasileira, já fornece o tom fora do status quo do autor em questão. Em resposta à publicação de “Memorial Orgânico” de Varnhagen, historiador do Império, em que propunha a escravização dos indígenas por se encontrarem fora do pacto social estabelecido pela lei civil, Manuel demonstra indignação e sai em defesa dos indígenas brasileiros:

“Se a história dos fatos não serve para justificar o que pretende o autor, o exame dos direitos está no mesmo caso. Não serve para justificar a guerra aos indígenas o alegar-se que são gente nômade e sem assento fixo, porque enfim, ainda que isso fosse absolutamente verdadeiro, há de haver na terra um lugar para eles, que como nós têm direito à vida e à subsistência.”[1]

Visconde de Porto seguro, ou Francisco Adolfo de Varnhagen, era membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que tinha como objetivo a construção de uma história nacional, sob influência dos ideais românticos que também se manifestaram na literatura através de José de Alencar, e estreita ligação com as elites políticas dirigentes.

 A esse respeito, Bernardo Ricupero afirma que o intuito do Instituto era dar sustentação cultural para o regime estabelecido. Como exemplo, aponta, além das contribuições de Varnhagen, o trabalho histórico de Gonçalves Magalhães sobre a balaiada, em que o autor não só apoia a ação militar do Duque de Caxias, como também usa o episódio como forma de divulgar a necessidade de uma unidade que ignora as divergências partidárias.[2]

Diante de tais fatos que inauguram a carreira de Manuel no Correio Mercantil, é possível compreender a afirmação de Antonio Cándido, no prefácio dedicado ao livro na biblioteca de Ayacucho, em que afirma que o autor de “memórias de um sargento de milícias” não estava vinculado a nenhuma racionalização ideológica de seu período, nem mesmo às classes dirigentes de então. Sendo assim, seria possível considerá-lo um escritor marginal, mais ligado ao espírito do povo e seus costumes, e por isso mesmo mais capacitado que Alencar para descrever com naturalidade a realidade social.

Essa característica de Manuel apontada pelo prefaciador da biblioteca de Ayacucho pode ser confirmada por um texto de Machado de Assis intitulado “O jornal e o livro” e dedicado ao autor de memórias, que teve a maior parte de sua carreira e escritos diretamente relacionados ao jornalismo, em que afirma: “O jornal, literatura quotidiana, no dito de um publicista contemporâneo, é reprodução diária do espírito do povo, o espelho comum de todos os fatos e de todos os talentos, onde se reflete, não a ideia de um homem, mas a ideia popular, esta fração da ideia humana”[3]

Apesar das referidas qualidades do autor, a primeira publicação do livro “memórias de um sargento de milícias”, entre 1854 e 1855 em dois volumes, foi um fracasso de vendas. Mesmo com a produção de poucos exemplares e a divulgação da venda da obra através do Correio Mercantil, a maior parte dos volumes ficou parada em estoque. Foi somente após a morte do autor e, principalmente, no século XX, que passou por sucessivas reedições nas mãos de importantes intelectuais se tornando um clássico de grande sucesso.

A mudança na recepção deve ser considerada a partir das condições históricas estruturais, que condicionam horizontes de expectativa, e as novas significações que isso acarretou. Sobre esse aspecto, a publicação do livro na coleção de clássicos da biblioteca de Ayacucho é de grande importância e significação.

A biblioteca foi fundada na Venezuela em 1974 por iniciativa governamental em um período de instabilidade política internacional e latino-americana, e de grande desenvolvimento social e econômico. Graças a exportação do petróleo o governo teve condições de investir no desenvolvimento cultural e ser considerado uma democracia exemplar em meio as várias ditaduras que surgiam em seu entorno e com a Operação Condor em andamento.

O nome dado à biblioteca e a escolha de seu primeiro volume são simbólicos das intenções de sua criação. A batalha de Ayacucho é considerada o combate derradeiro das guerras de independência hispano-americanas, com a derrota decisiva da metrópole espanhola. O autor do primeiro volume da biblioteca, Simón Bolívar, foi idealizador de uma grande união latino-americana. O projeto, para o qual Ángel Rama foi escolhido como um dos responsáveis pela organização, é a de construção de um cânon literário latino-americano, com identidade própria não reduzida ao eurocentrismo, que possibilite uma integração da América Latina pela via cultural.[4]

Para esse projeto, Antonio Candido foi escolhido por Ángel para selecionar obras e intelectuais brasileiros para comporem o cânon[5] e foi o responsável por escrever o prefácio de “memórias de um sargento de milícias”, qualificando a obra como corrente literária e sua importância pelo significado que assume para a coleção e a realidade social que retrata.

A respeito da qualificação da obra como corrente literária, Antonio Candido inicia o prefácio oferecendo um panorama de como a crítica literária encarou a obra de Manuel Antônio de Almeida. Sendo inicialmente classificada como novela de costumes por José Veríssimo, depois filiada à tradição da novela picaresca por Mario de Andrade, classificação que posteriormente seria criticada por Darcy Damasceno, o prefaciador conclui que sua intenção é “caracterizar una modalidade bastante peculiar que se manifesta en el libro de Manuel Antonio de Almeida”.[6]

Antonio Candido discorda que o livro possa ser encaixado na tradição das novelas picarescas. Nessas novelas geralmente o próprio pícaro é o narrador de suas aventuras, além disso, apesar de Leonardo ser de origem humilde e de uma relação “irregular” entre seus pais, não sofre o duro choque com a realidade que torna os personagens pícaros sem escrúpulos como forma de sobrevivência.

O personagem de Manuel, logo após de ser abandonado por seus pais, é acolhido pelo compadre que lhe oferece todas as condições materiais de subsistência, sem que passe por grandes dificuldades na vida. Mesmo assim, desde jovem, o “herói” da história é reconhecido como de um gênio difícil e com um destino nada favorável, o que contradiz a perspectiva das novelas picarescas em que o personagem é moldado pelas circunstâncias de dificuldade.

O pícaro aprende com as dificuldades e desenvolve uma filosofia desencantada do mundo, pessimista e cínica, sempre circulando entre as camadas sociais e se aproveitando de todos sem grandes sentimentos:

“Curtido por la vida, maltrecho y vencido, él no tiene sentimentos aunque sí reflejos de ataque y defensa. Traicionando a los amigos, engañando a los patrones, no tiene uma línea de conducta, no ama y, si se llegara a casar, lo haría por interés, dispuesto siempre a las acomodaciones más hoscas, como el pobre Lazarillo.”[7]

Em contrapartida, apesar de Leonardo não ser um romântico idealista, ele nutre sentimentos sinceros por Luisinha e não se casa por simples interesse com a garota ao final do livro. Também é leal e ajuda um conhecido da família a fugir do Vidigal mesmo que a custa de seu próprio bem-estar, acabando preso.

O prefaciador então propõe que Leonardo não seja um personagem continuador da tradição picaresca, mas o primeiro grande malandro da novela brasileira, estando ligado a “una tradición casi folklórica”[8]. Dessa forma, carrega consigo características cômicas e populares do Brasil de seu tempo, chegando próximo de arquétipos em alguns momentos e de um realismo profundamente popular em razão da operação de abstrair indivíduos e ocasiões comuns da vida cotidiana em tipos gerais cômicos.

Para corroborar sua tese, Antonio Candido argumenta que o personagem pratica a astúcia e prega peças simplesmente pelo prazer de fazê-las, e não em algum sentido pragmático para atingir algum fim que seria característico dos pícaros.

Seguindo adiante, discute sobre a possibilidade de o livro ser classificado como uma novela documental por suas descrições detalhadas de festividades e costumes culturais do tempo em que se passa a história. Argumenta que o recorte social e espacial é limitado, se atendo somente ao que seria o centro do rio de janeiro e às classes sociais médias, sem a grande massa e trabalhadores escravos, que só aparecem em poucas cenas como a da ida ao Campo para assistir aos fogos. Também sem a presença das elites dirigentes, com uma curta aparição de um fidalgo que interveio em favor da soltura de Leonardo Pataca diante do Rei.

Portanto, o valor da obra não estaria em documentar ou descrever fatos sociais, o que Antonio Candido critica até mesmo como uma falha na composição artística da narração, como o ocorrido na descrição da procissão dos ourives que se torna um quadro autônomo de qualquer ação das personagens, uma paisagem estática e fora do tempo. A realidade transmitida pela obra e de valor para a coleção da biblioteca Ayacucho:

 “proviene de una visión más profunda, aunque instintiva, de lá función o “destino” de los seres en esa sociedad […] Manuel Antonio, a pesar de sus ligerezas, tiene uma cosa em común com los grandes realistas: la capacidad de intuir, más ala de los fragmentos descritos, ciertos princípios constitutivos de la sociedade, ese elemento oculto que actúa como totalizador de los aspectos parciales”[9]

O valor da obra estaria então na sua intuição sobre a organização social e suas dinâmicas percebidas a partir das relações entre os personagens. Antonio Candido propõe que além de uma camada universalizante mais ampla que provoca ressonâncias em leitores de culturas mais diversas em razão dos personagens arquetípicos, há também um mais restrito que diz respeito ao público brasileiro.

Sobre esse segundo estrato o autor argumenta que sua principal característica, representada pelas interações entre os personagens e suas respectivas trajetórias, é a dialética da ordem e da desordem. Essa seria a percepção profunda das relações sociais brasileiras tomadas em sua totalidade por Manuel Antônio de Almeida.

A dinâmica é exemplificada a partir da trajetória de alguns personagens. Toma-se como exemplo o padrinho, alocado no hemisfério da ordem, responsável pela educação de Leonardo, sustento material e grande interessado em um bom futuro como clérigo para o afilhado. O narrador revela que esse mesmo personagem, moralmente íntegro e que desperta admiração do leitor por seus cuidados incansáveis, se arranjou na vida roubando o dinheiro de um capitão de navio em estado terminal que havia confiado a ele a tarefa de entregar a herança para a filha.

Exemplo mais significativo é o do Major Vidigal, símbolo máximo da ordem social no romance, responsável por prender e disciplinar as classes inferiores e marginalizadas. Esse mesmo personagem é convencido por uma antiga amante a libertar Leonardo da prisão, ignorar os rigores da disciplina militar e ainda promover o jovem a sargento, para em troca conseguir que morar com ela. Então percebe-se uma dinâmica fluida entre os dois polos, que contradiz uma fixação rígida e dicotômica da realidade em “bom” e “mal”.

É essa organização estrutural do romance que garante um diálogo entre a ficção de Manuel e a realidade social brasileira. O prefaciador argumenta que uma das tarefas mais árduas das sociedades é estabelecer ideologias que organizem os valores em pares dicotômicos como “moral” e “imoral”, “justo” e “injusto” entre outras divisões rígidas que dão oportunidade para os escritores satíricos apontarem as hipocrisias de uma sociedade. Indo na contramão dessa perspectiva, Memórias apresenta uma sociedade sem culpa, em equilíbrio e que transita constantemente entre os dois polos sem problema algum.

Em um momento em que “uma sociedade joven, que intenta disciplinar la irregularidad de su savia para equipararse a las viejas sociedades que le sirven de modelo, desarrolla normalmente ciertos mecanismos ideales de contención que aparecen em todos los sectores”[10], Manuel e seu romance são apresentados como um contraste que revela formas de sociabilidade espontâneas e propriamente brasileiras, ou até mesmo latino-americanas.

Um país e um continente que experimentaram sociabilidades plurais culturalmente, que permitiram uma maior penetração de grupos diversos e uma menor obsessão com princípios únicos absolutos que seccionam a realidade entre “eles” e “nós”, culminando numa maior tolerância em contraste com os velhos continentes ou com o puritanismo norte-americano. Fica claro o lugar da obra de Manuel Antônio de Almeida na coleção dos clássicos da Biblioteca Ayacucho, na busca da formação de uma identidade cultural propriamente latino-americana, independente da cultura do colonizador e com valor próprio com capacidade de protagonismo internacional em um mundo igualmente plural.

Bibliografia

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Civilização dos indígenas: duas palavras ao autor do “Memorial Orgânico”. Literatura brasileira UFSC, 1991. Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=44186#CIVILIZA%C3%87%C3%83ODOSIND%C3%8DGENAS

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memorias de un sargento de milicias. Tradução de Elvio Romero. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1977. Prefácio: Antonio Candido.

ASSIS, Joaquim Maria Machado. O Jornal e o livro. São Paulo: Editora Penguin, 2011.

DEMENECH, Pedro. Coleção e identidade na crítica de Ángel Rama nos anos setenta. História e historiografia, Ouro Preto, n.20, abril 2016.

RICUPERO, Bernardo. Romantismo e a ideia de nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins Fontes, 2004.

VENANCIO, Giselle Martins. Notícia bibliográfica: breves considerações sobre Visión del Paraíso na biblioteca Ayacucho. In: FURTADO, André e VENANCIO, Giselle (org.). Visão do Paraíso, de Sergio Buarque de Holanda, seis décadas de um ensaio. Belo Horizonte. Fino Traço, 2020.


[1] ALMEIDA, Manuel Antônio de . Civilização dos indígenas: duas palavras ao autor do “Memorial Orgânico”. Literatura brasileira UFSC, 1991. Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=44186#CIVILIZA%C3%87%C3%83ODOSIND%C3%8DGENAS.

[2] RICUPERO, Bernardo. Romantismo e a ideia de nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.119-120

[3] ASSIS, Joaquim Maria Machado. O Jornal e o livro. São Paulo: Editora Penguin,2011, p.48

[4] DEMENECH, Pedro. Coleção e identidade na crítica de Ángel Rama nos anos setenta. História e historiografia, Ouro Preto, n.20, abril 2016, p.94-99

[5] VENANCIO, Giselle Martins. Notícia bibliográfica: breves considerações sobre Visión del Paraíso na biblioteca Ayacucho. In: FURTADO, André e VENANCIO, Giselle (org.). Visão do Paraíso, de Sergio Buarque de Holanda, seis décadas de um ensaio. Belo Horizonte. Fino Traço, 2020. P. 132

[6] ALMEIDA, Manuel Antonio. Memórias de un sargento de milicias. Tradução de Elvio Romero. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1977. Prefácio: Antonio Candido, p. X

[7] Ibid. p. XIII.

[8] Ibid. p. XIV.

[9] Ibid. p. XXI.

[10] Ibid. p. XXXIII – XXXIV.

Autores: Davi Schelotag de Moraes e Leonardo Delatorre Leite

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