Holocausto Brasileiro: um lado sombrio da história brasileira (Hospital Colônia de Barbacena)

Holocausto Brasileiro: um lado sombrio da história brasileira (Hospital Colônia de Barbacena)

 É ponto pacífico entre qualquer pessoa razoável: manicômios não devem existir.

Listaremos as características de um manicômio, a partir da descrição feita pelo livro Holocausto Brasileiro, que conta a história do hospital Colônia, situado em Barbacena/MG:

  • Um complexo de dimensões impressionantes, tomado por prédios, cercado por muralhas altas, de interior lúgubre (não raro com um cadáver estirado entre os vivos), ambiente cinza, com esgoto a céu aberto ladeando as alas, visitado frequentemente por ratos, urubus e percevejos.
  • Pavilhões enormes onde 400 pacientes estão sob os cuidados de 1 médico, ou então, de 2 ou 3 atendentes psiquiátricos (sem formação nenhuma em saúde).
  • Leitos compostos por palha seca forrando o chão, ou camas precárias, onde pessoas se amontoam para enfrentarem a noite da Serra da Mantiqueira.
  • 70% dos atendidos não sofrem de doença mental. No livro, não é especificado como é realizada a triagem para o internamento. Qualquer um pode internar quem desejar: delegados, policiais, familiares, vizinhos, políticos e até profissionais da saúde podem assinar o internamento. Assim, os internos são um grupo extremamente diverso: pessoas com tristeza, tímidos, desafetos, militantes políticos, epilépticos, negros, homossexuais, amantes, pobres, etc.
  • O eletrochoque e as medicações (na época existiam apenas duas: diazepam e amplictil) nem sempre são usadas com finalidades terapêuticas, mas como método de castigo e intimidação. Para informações mais atualizadas sobre o eletrochoque.
  • Gestos de humanidade, compaixão e gentileza só aparecem no relacionamento entre os próprios pacientes. Em nenhum momento há qualquer traço de nobreza de caráter, de compreensão, de entrega emanando dos funcionários do manicômio para os pacientes.
  • Pacientes movimentam um negócio lucrativo para o manicômio, através da colheita de milho, batata-doce, feijão, mandioca e da tecelagem. Quando exaurem suas forças e morrem, são vendidos para laboratórios de anatomia das grandes universidades.

A imagem de manicômio pintada no livro é como na foto de abertura: feita a distância, sem nitidez em algumas áreas, preto no branco (idéias polarizadas, sem as nuances de uma realidade complexa e desafiadora).

Algumas inconsistências mais centrais do livro:

  • O argumento central do livro é: manicômios são reproduções institucionais nos moldes dos campos de concentração e extermínio nazistas. O nazismo usava a teoria da eugenia para se apropriar dos bens dos judeus (bem como de outras minorias), explorar a sua força de trabalho e eliminá-los quando essa força declinasse. Em Barbacena, a imensa maioria dos internos eram pobres – a própria vida já havia expropriado seus bens. Uma única menção, no livro, da utilização da força de trabalho dos internos é colhida de um registro de 1916.
  • Abriremos aspas para um parágrafo do livro: “Além daqueles 30 cadáveres, outros 1.823 corpos foram vendidos pelo Colônia para dezessete faculdades de medicina do país entre 1969 e 1980. Como a subnutrição, as péssimas condições de higiene e de atendimento provocaram mortes em massa no hospital, onde registros da própria entidade apontam dezesseis falecimentos por dia, em média, no período de maior lotação. A partir de 1960, a disponibilidade de cadáveres acabou alimentando uma macabra indústria de venda de corpos”.
  • Vamos aos cálculos: 10 anos = 3650 dias (desconsiderando anos bissextos). Dividindo os 1850 corpos pelos 10 anos (entre 1969 e 1980, quando foram feitos registros das vendas de corpos) dá uma média de 2 corpos por dia. Conclusões que podemos tirar: 1) Esse período não teve mortalidade média compatível com períodos de maior lotação.2) Talvez o hospital estivesse lotado, mas por acaso houveram, menos mortes. 3) Talvez, na maior parte do tempo, o hospital não estivesse lotado .4) Nem todo falecimento abastecia a indústria de venda de corpos. 5) Talvez esses 16 falecimentos/dia tenham sido simplesmente exagerados para propósitos de sustentação da tese do livro (mas e aquele outro número estampado na capa do livro: 60 mil mortos no maior hospício do brasil? De onde veio?). O livro carece de fontes de onde esse dados surgiram.

Não custa ressaltar: manicômios não devem existir! Resgatar e preservar a memória desses lugares é prevenir que esses erros se repitam. Porém a memória pode ser seletiva.. como esclarece a ciência.

Existem idéias equivocadas expostas mais abertamente no transcorrer do livro:

  • Uma paciente dá a luz a uma criança durante o internamento. Fica claro que em meio aquele ambiente degradante, a mulher não teria as melhores condições de criar essa criança. O hospital visando o melhor para a criança a coloca para adoção, por meio do serviço de assistência social. Mas essa lógica é invertida, para mostrar o quão perversa foi a administração ao separar mãe e filho.
  • Por diversas vezes, pacientes tiveram seus sangues retirados sem o seu consentimento por “vampiros humanos”, armazenados em recipientes de vidro, a fim de aplicar em organismos mais debilitados (a citação é literal).
  • Exames de sangue podem ser considerados atos vis de furar pessoas sadias para o enriquecimento dos donos de laboratórios de análises.
  • Pacientes com hidrocefalia foram internados por não atenderem aos padrões sociais de beleza, experimentando a segregação por critérios meramente estéticos, mesmo havendo tratamentos médicos disponíveis.
  • Crises de agressividade são consequências da TPM. Com um olhar holístico poderemos tratar a agressividade com óleo de prímula. Mas alardear tal benefício do óleo seria uma punhalada fatal no orgulho médico e seus diagnósticos complicados.
  • Em vários momentos transparece a idéia equivocada de que se em algum momento os pacientes ficaram doentes, foi decorrente do ambiente degradante do Colônia. Não é ao menos levantada a hipótese de que alguns já estariam adoecidos previamente.

O livro Holocausto Brasileiro expõem chagas terríveis do Colônia. Isso é inegável. O senso-crítico, a curiosidade e a honestidade intelectual de cada leitor fará a decantação das informações, para que de suas páginas emerja o que há de mais próximo à verdade.

O livro é uma das vozes do movimento que se denomina Luta Antimanicomial. Essa luta se insere numa outra maior chamada Reforma Psiquiátrica (amparada na lei 10.216 de 2001, mas que agora conta com um avanço e contra-peso salutar da portaria 3.588 de 2017). Um problema fundamental são as generalizações e lógica maliciosas, do tipo: todo manicômio como o Colônia deve ser fechado; todo hospital psiquiátrico é manicomial; logo, todo hospital psiquiátrico deve ser fechado. Existe sensibilização (mesmo que sensacionalista) da população para o tema, mas não há um desejo genuíno de esclarecimento.

Passarei a palavra ao poeta Ferreira Gullar, em artigo publicado na Folha de São Paulo em 2009, intitulado – “Uma lei Errada”. Ferreira Gullar é poeta, homem de sensibilidade refinada, pensador e intelectual independente e lúcido. Foi crítico dos descaminhos, exageros e usos políticos da luta manicomial e reforma psiquiátrica. Ele fala com conhecimento de causa, sentiu em sua própria carne, a luta para ajudar dois de seus filhos esquizofrênicos.

Holocausto Brasileiro um lado sombrio da história brasileira (Hospital Colônia de Barbacena)

Ferreira Gullar:

“A campanha contra a internação de doentes mentais foi inspirada por um médico italiano de Bolonha. Lá resultou num desastre e, mesmo assim, insistiu-se em repeti-la aqui e o resultado foi exatamente o mesmo.
Isso começou por causa do uso intensivo de drogas a partir dos anos 70. Veio no bojo de uma rebelião contra a ordem social, que era definida como sinônimo de cerceamento da liberdade individual, repressão “burguesa” para defender os valores do capitalismo.

A classe média, em geral, sempre aberta a ideias “avançadas” ou “libertárias”, quase nunca se detém para examinar as questões, pesar os argumentos, confrontá-los com a realidade. Não, adere sem refletir.
Havia, naquela época, um deputado petista que aderiu à proposta, passou a defendê-la e apresentou um projeto de lei no Congresso. Certa vez, declarou a um jornal que “as famílias dos doentes mentais os internavam para se livrarem deles”. E eu, que lidava com o problema de dois filhos nesse estado, disse a mim mesmo: “Esse sujeito é um cretino. Não sabe o que é conviver com pessoas esquizofrênicas, que muitas vezes ameaçam se matar ou matar alguém. Não imagina o quanto dói a um pai ter que internar um filho, para salvá-lo e salvar a família. Esse idiota tem a audácia de fingir que ama mais a meus filhos do que eu”.

Esse tipo de campanha é uma forma de demagogia, como outra qualquer: funda-se em dados falsos ou falsificados e muitas vezes no desconhecimento do problema que dizem tentar resolver. No caso das internações, lançavam mão da palavra “manicômio”, já então fora de uso e que por si só carrega conotações negativas, numa época em que aquele tipo hospital não existia mais. Digo isso porque estive em muitos hospitais psiquiátricos, públicos e particulares, mas em nenhum deles havia cárceres ou “solitárias” para segregar o “doente furioso”. Mas, para o êxito da campanha, era necessário levar a opinião pública a crer que a internação equivalia a jogar o doente num inferno. (…)

A maioria das clínicas psiquiátricas particulares de hoje tem salas de jogos, de cinema, teatro, piscina e campo de esportes. Já os hospitais públicos, até bem pouco, se não dispunham do mesmo conforto, também ofereciam ao internado divertimento e lazer, além de ateliês para pintar, desenhar ou ocupar-se com trabalhos manuais.

Com os remédios à base de amplictil, como Haldol, o paciente não necessita de internações prolongadas. Em geral, a internação se torna necessária porque, em casa, por diversos motivos, o doente às vezes se nega a medicar-se, entra em surto e se torna uma ameaça ou um tormento para a família. Levado para a clínica e medicado, vai aos poucos recuperando o equilíbrio até estar em condições que lhe permitem voltar para o convívio familiar. No caso das famílias mais pobres, isso não é tão simples, já que saem todos para trabalhar e o doente fica sozinho em casa. Em alguns casos, deixa de tomar o remédio e volta ao estado delirante. Não há alternativa senão interná-lo.

Pois bem, aquela campanha, que visava salvar os doentes de “repressão burguesa”, resultou numa lei que praticamente acabou com os hospitais psiquiátricos, mantidos pelo governo. Em seu lugar, instituiu-se o tratamento ambulatorial e CAPS, que só resulta para os casos menos graves, enquanto os mais graves, que necessitam de internação, não têm quem os atenda. As famílias de posses continuam a por seus doentes em clínicas particulares, enquanto as pobres não têm onde interná-los. Os doentes terminam nas ruas como mendigos, dormindo sob viadutos.

É hora de revogar essa lei idiota que provocou tamanho desastre.”

O nosso maior desejo é que o amor à verdade prevaleça. O debate é possível. Tensões inevitavelmente ocorrerão mas são o preço da democracia. E é no embate de idéias que avançamos.

Gustavo Henrique Takarada – médico psiquiatra.(SITE PSIQUIATRIZANDO)

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Leia nossa indicação e post “É possível chegar a perfeição do ser humano?”

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