Texto escrito em coautoria com Davi Schelotag de Moraes
Herbert Hart, clássico representante do juspositivismo analítico, abordou as relações entre Direito e Moral, estabelecendo as suas semelhanças e diferenças. Num primeiro momento, é importante reiterar que Hart, assim como todos os positivistas, recusa o dogma das teorias do “Direito Natural” como estabelecido por diversos autores, tais como: Aristóteles, São Tomás de Aquino, Hugo Grócio, John Locke, Kant, L.L. Fuller e John Finnis. Desse modo, ele se vincula aos preceitos da tese da separabilidade. No entanto, o pensador positivista constata que existem elementos primários do Direito, os quais, em última instância, representam e tipificam determinadas regras básicas de obrigação, que se encontram associadas e relacionadas às nuances da forma de vida humana. Sob essa perspectiva, discorre Neil MacCormick (HLA Hart, Elsevier), “certos tipos de restrição sobre assassinato, violência, desonestidade, fraude e violação da boa-fé, e sobre o livre uso de bens de valor, são importantes para os humanos como seres sociais porque estes devem ter tais restrições se pretendem coexistir em estreita proximidade uns com os outros” (C.L., p. 91).
Em vista disso, deve-se destacar que o entendimento de Hart segundo o qual as restrições são essenciais para a ordenação da vida social encontra suas raízes na aceitação, por parte do autor, de certos aspectos do que comumente se chama de tradição jusnaturalista. É premente ressaltar também que algumas ramificações e subdivisões dessa tradição estão baseadas e ancoradas na convicção de que uma certa reflexão sobre a natureza humana — e, num certo modo, sobre a sabedoria divina — revela aos indivíduos os principais valores e bens que devem ser racionalmente tidos como alvos do empenho e das aspirações humanas. Sendo assim, os princípios supracitados, cuja adoção e busca implicariam a efetivação dessas formas básicas de bem, constituiriam, por conseguinte, um modelo, ou melhor, um conjunto de orientações e disposições elementares para o estabelecimento de convenções e leis. Uma outra subdivisão da tradição tida como jusnaturalista reitera uma preponderância maior às faculdades de raciocínio e intelectivas, constatando a existência de princípios básicos passíveis de descoberta pela razão, os quais usufruem do status de axiomas morais a partir dos quais as regras corretas de conduta social encontrariam o seu fundamento e justificativa.
Uma terceira corrente, relacionada, sobretudo, aos nomes de Thomas Hobbes e David Hume, dispensa, em grande medida, o “racionalismo” aparentemente implícito nas ramificações anteriores. Hart acaba por se vincular, num certo sentido, aos preceitos dessa terceira subdivisão. Para o jus positivista, assim como para David Hume, os seres humanos possuem uma determinada constituição física e emocional, bem como uma capacidade racional de arquitetar, precipitar e compreender as sequências causais descobertas ao longo do curso da natureza. Ademais, os homens são seres eminentemente sociais, cuja sobrevivência, a longo prazo, pressupõe coordenação de esforços e cooperação com os outros de sua espécie. Desse modo, o esforço cooperativo constitui condição indispensável para o desenvolvimento humano. Como elemento nuclear de sua constituição emocional, os indivíduos usufruem de um poderoso instinto de sobrevivência, que se manifesta também numa tentativa constante de garantir a preservação de suas famílias e das pessoas lhe são mais próximas. Enfim, uma investigação do padrão real de organização e ordenação das sociedades humanas aponta elementos comuns, os quais podem ser qualificados como condições essenciais de sobrevivência individual e coletiva, especialmente, em razão do conhecimento que podemos verificar das qualidades humanas e das nuances do próprio caráter físico do nosso planeta.
Em termos sintéticos, as obrigações e deveres morais e as obrigações jurídicas se assemelham, sobretudo, em três aspectos, a saber: caráter vinculativo de suas normas, forte pressão social exercida para vê-las respeitadas e, por fim, a abordagem das condições mínimas para a sobrevivência da sociedade. Desse modo, Hart enxerga a eminência da dimensão moral e da estrutura axiológica do direito natural a partir de seu conteúdo mínimo, que se expressa no chamado “sistema de abstenções mútuas”, o qual consiste em um instrumento de preservação da harmonia social e da sobrevivência humana. O sistema de abstenções mútuas consiste na elucidação dos seguintes aspectos: vulnerabilidade humana, igualdade aproximada, recursos limitados, altruísmo limitado, compreensão e força de vontade limitadas. O chamado “conteúdo mínimo de Direito Natural” de Hart não pode ser qualificado como uma garantia de uma sociedade justa e boa, tampouco enquanto um complexo de princípios instituídos e determinados, de modo categórico, pela razão correta de propiciar a justiça entre os homens. Sob essa perspectiva, verifica-se uma nítida indeterminação na forma de entendimento e imposição dos elementos supracitados pela autoridade. A relação entre Direito e Moral é caracterizada pela contingência.
Numa primeira análise, o direito natural, em relação ao tópico da vulnerabilidade humana, considera as limitações e contingências da existência humana e, por conseguinte, estabelece mecanismos para superá-las parcialmente, sobretudo com o intuito de zelar pela sobrevivência dos indivíduos. Importante frisar que a vulnerabilidade está muito relacionada com a imposição de abstenções imprescindíveis para a sobrevivência dos homens . Em virtude do que foi apresentado, percebe-se que, para Hart, há certos fatos e condições da vida humana que agem como condicionantes de desdobramentos morais e jurídicos.
Em relação ao quesito da igualdade aproximada, Hart afirma que nenhum homem, independentemente da força física ou da capacidade intelectual, pode exercer controle duradouro e arbitrário sobre a vontade do próximo. Nesse sentido, a igualdade aproximada atua como uma espécie de promoção de uma “igualdade básica” necessária para a estabilidade das relações entre os homens. Destarte, é possível afirmar que se trata de um mecanismo de atenuação das desigualdades e diferenças naturais entre os indivíduos, tendo em vista um equilíbrio necessário para a convivência social.
Quanto ao tópico “recursos limitados”, o direito natural objetiva lidar com a escassez, estabelecendo, assim, regras para a preservação da propriedade privada e para coexistência das vontades individuais, protegendo o patrimônio dos homens e a segurança imprescindível para a perpetuação de uma relativa ordem na economia. O altruísmo limitado, por sua vez, aborda a necessidade de uma mínima contenção da imoralidade humana, pois seria impossível a harmonia das relações intersubjetivas numa conjuntura de total violência e maldade. Desse modo, o altruísmo limitado atua como uma espécie de instrumento de promoção dos valores elementares para a relativa estabilidade dos vínculos humanos. Segundo o próprio Herbert Hart, “não é preciso que os homens sejam anjos, todavia, os homens não devem se igualar a demônios”. Ademais, o direito natural entende as limitações presentes na compreensão e força de vontade humanas e estabelece requisitos mínimos para atenuar tais restrições, sobretudo pelo fomento da complementariedade existente nas relações intersubjetivas. Em vista do que foi apresentado, percebe-se que o conteúdo mínimo do direito natural se manifesta no sistema de abstenções mútuas e nos seus elementos, tais como: liberdade, vulnerabilidade humana, igualdade aproximada, recursos limitados, altruísmo limitado e, por fim, compreensão e força de vontade limitadas. Por certo, o conteúdo mínimo do direito natural parece lidar com as condições mínimas para a estabilidade das relações intersubjetivas. Enfim, Hart deixa claro que a preocupação primordial do direito natural e da moral consiste na sobrevivência humana. A sobrevivência é um objetivo comum do direito e da moral.
Enquanto um positivista, Hart entende e afirma a tese da separabilidade entre o direito e a moralidade. Ademais, muitos estudiosos e juristas compreendem que as ideias nevrálgicas de Hart estão contidas nos seguintes elementos teóricos: o método hermenêutico, a tese das fontes sociais do direito, a tese da separabilidade conceitual do direito e da moralidade e, por fim, a tese da discricionaridade judicial. Conforme destacado anteriormente, Direito e Moral apresentam uma relação de proximidade e semelhança, mas também possuem suas diferenças e particularidades. Nesse sentido, Hart afirma que as obrigações morais se distinguem das obrigações jurídicas por uma ampla gama de aspectos, tais como: importância, imunidade à alteração deliberada, caráter voluntário das infrações morais e, por fim, a forma de pressão moral. Em relação ao aspecto da importância, os deveres morais são cumpridos a despeito das pretensões individuais. Dessa forma, a moral implica a renúncia, ou seja, a abdicação da vontade particular em prol de um valor social. A importância da moral guarda uma relação íntima com a forma de pressão da moralidade, visto que os deveres morais apelam diretamente à consciência individual, frisando a eventual culpa advinda de um possível descumprimento das obrigações em questão. Além disso, as obrigações morais, diferentemente das obrigações jurídicas, não podem ser alteradas pela vontade e pela atuação do legislador, já que os deveres de ordem moral possuem uma relação notável com a cosmovisão social e com os elementos e valores presentes na vida em sociedade.
Destarte, é possível averiguar que a moral possui imunidade à alteração deliberada. Em relação ao caráter voluntário das infrações morais, a dimensão dos deveres morais reiteram a vontade deliberada, isto é, adotam a voluntariedade como critério distintivo para caracterização do cumprimento de uma obrigação. Todavia, as obrigações jurídicas, mesmo quando atestada a inexistência do dolo de um indivíduo, podem responsabilizar juridicamente o mesmo.
Ademais, as obrigações e deveres morais, embora tipifiquem os fundamentos, não englobam a totalidade da moral, pois a moralidade apresenta uma dimensão atrelada às virtudes, ou seja, qualidades que consistem na disposição e na capacidade de ir além dos limites estabelecidos pelo dever no que concerne ao sacrifício da vontade individual e busca da vontade alheia. Dessa forma, a moral apresenta uma dimensão atrelada aos indivíduos que são chamados de “santos”, “heróis” e “modelos de imitação e inspiração”. Desse modo, Hart, ao explicar as diferenças entre deveres morais e as obrigações jurídicas, deixou explícita a separabilidade entre direito e moral.
Além disso, cabe destacar que é central para a filosofia jurídica de Hart a ideia de regra[1], que possui como característica nuclear a existência de um padrão de conduta a ser cumprido, ou melhor, cujo cumprimento é esperado, atuando como justificativa para a ação e como base legítima para a realização de crítica em caso de descumprimento. Não obstante, não é necessário que o descumprimento seja seguido por uma sanção para que a regra seja reconhecida como jurídica e definitiva. Hart constata que determinados desdobramentos do desvio de certos atos jurídicos, como as nulidades, não podem ser tipificados como sanções, ainda que representem eventos penosos e desagradáveis a quem as sofra. A sanção possui nitidamente um elemento de negatividade e presume o caráter errado/equivocado da conduta que justifica a sua imposição, ao passo nem todas as normas jurídicas usufruem dessa capacidade. Cabe salientar também que a teoria hartiana possui uma tendência eminentemente hermenêutica, que se manifesta, sobretudo, no ponto de vista interno. Em Kelsen, as normas e sanções são caracterizadas, principalmente, como orientações para as condutas e comportamentos das pessoas num sentido apenas indireto, visto que os seus destinatários diretos são os chamados oficiais do sistema, que possuem o encargo de reconhecer tais normas e aplicá-las corretamente diante dos fatos que lhes são cabíveis. No entanto, em Hart, os cidadãos são seguidores das regras e normas na mesma medida em que os oficiais, ou melhor, tanto quanto estes.
Por fim, Herbert Hart compreende que a relação entre direito e moral não é necessária, mas contingente. Portanto, é possível verificar a separação conceitual do direito e da moral no positivismo institucionalista (juspositivismo analítico) de Hart. Nas palavras do próprio autor, a sua teoria jurídica é marcada por um aspecto geral e por uma dimensão meramente descritiva, que leva em consideração o ponto de vista interno do sujeito participante do sistema, mas não se deixa levar pela “moralização do direito”.
[1] Hart opera uma distinção entre regras primárias (aquelas que regulam, condicionam e governam diretamente as condutas) e regras secundárias (que regulam e condicionam as etapas formais e os métodos procedimentais por meio dos quais as regras primárias são devidamente concretizadas, efetivadas e processadas). Por sua vez, as regras secundárias se subdividem em três ramificações, sendo elas: as regras de mudança, as regras de julgamento e as regras que conferem poderes. Essas classificações e pares de distinções não são idênticos, não se confundem, embora seja possível uma relação de justaposição entre eles. Reiteradamente, Hart afirma que o direito constitui um sistema de regras primárias e secundárias. Ao passo que as regras secundárias são caracterizadas e definidas em razão de sua função institucional, as regras primárias (de primeira ordem) impõem deveres, conferem poderes e regulam as obrigações e direitos dos cidadãos. Enfim, as regras de segunda ordem objetivam a estruturação do sistema de regras constituído e estabelecido pelo complexo de regras primárias.
Autores: Leonardo Delatorre Leite e Davi Schelotag de Moraes