Cambaleamos todos os dias numa dualidade entre a vida e a morte, ocupamo-nos em não pensar, em não falar e em não aceitar a nossa própria finitude, a complexidade e a incompletude de existirmos num mundo que é de uma natureza tão mortal.
Antigamente, a morte surgia de uma forma muito natural, associada às doenças que proliferavam e às guerras que se iam propagando. A morte era pública, a pessoa morria em casa, com a sua família, amigos e vizinhos. A transição para a morte era feita no seio da família e apresentava-se como um ritual, em que as pessoas conheciam quem estava a morrer, visitavam a sua casa para se despedirem e para ouvirem os seus últimos desejos e palavras. Atualmente, com o desenvolvimento das tecnologias na biomedicina, os tratamentos são cada vez mais sofisticados, e com eles trouxeram o prolongamento da vida, embora o mesmo nem sempre se garanta quanto à sua qualidade.
Hoje, morremos “cientificamente” num hospital ou em unidades de cuidados paliativos. Aqui, a morte quase passa despercebida e a família, muitas vezes, não consegue estar presente nos últimos momentos do seu ente querido. A nossa casa deixou de ser o local privilegiado para morrermos. É no hospital que está o poder da cura e é lá que estão os meios para aliviar o sofrimento da pessoa que está a morrer.
“Morrer tornou-se num ato solitário e impessoal, desprovido da importância e do significado do que foi vivido e dos laços que foram construídos ao longo da vida.”
Do lado da família, com o objetivo de proteger o familiar doente, surge a tentativa de manter a pessoa ignorante da gravidade do seu estado, impondo-se uma alteração aos rituais familiares de despedida. Agora, a pessoa morre sem saber ou sem poder dizer que sabe que está a morrer. Esta mudança, surge perante a incapacidade que sentimos em falar e em lidar com a nossa própria finitude e com a finitude dos que amamos. E assim, a pessoa com a doença, vai estando cada vez mais isolada, e muitas das vezes, ainda que acompanhada, morre sozinha, com as suas dúvidas, receios, medos, preocupações, desejos e vontades que ficaram por ouvir e por cumprir. Morrer tornou-se num ato solitário e impessoal, desprovido da importância e do significado do que foi vivido e dos laços que foram construídos ao longo da vida.
Sobretudo enquanto resultado de uma doença grave e em progressão, a morte é vista como um acontecimento maligno, injusto e injustificável, que vem perturbar o curso habitual da nossa vida, do nosso bem-estar e da nossa felicidade. É percebida como um fracasso da medicina e do saber tecnológico que não foi capaz de a travar e de dar a cura à doença. Vivemos em exclusão da aproximação do nosso fim, sobre o desejo de alcançarmos mais e mais, em busca de um sentido de vida que parece nunca encontrar o seu propósito.
“Ao falarmos de morte, falamos, indubitavelmente, da nossa vida, e por isso, estamos a valorizá-la, a salientar a sua qualidade, mesmo quando sabemos que ela está a acabar ou que ela tem um fim.”
Assiste-se, igualmente, a uma pressão da sociedade no sentido de suprimir a manifestação pública do luto. A pessoa enlutada é entregue ao seu isolamento e à vivência do seu sofrimento com base nos padrões e rituais fúnebres que lhe são impostos. O luto complicado pode surgir devido a esta mudança de significações que fazem com que a morte seja desprovida de sentido e que se perca a capacidade de a enquadrar na linha de vida de cada um de nós. As manifestações do luto são também cada vez mais complexas. As crianças são protegidas de toda e qualquer informação sobre o familiar doente e sobre o morrer, são evitados comentários e demonstrações de tristeza como que se, ao evitarmos falar no assunto, ele não existisse mais. Assumimos uma atitude de negação e de evitamento, como que se aquela pessoa nunca tivesse existido nas nossas vidas e como se a criança não tivesse também o direito de sofrer com a sua perda. O morto é mais tarde lembrado e homenageado, quando o sofrimento associado à sua morte diminui, como se não tivesse marcado a sua cunha em toda a família, incluindo na vida da criança. Não somos capazes de encarar e de lidar com o nosso próprio sofrimento e com o sofrimento dos outros, nem com a dor da nossa perda.
“A morte não é inimiga da vida, são dois lados da mesma moeda.”
Enquanto seres humanos, vivemos com a crença de que não pensar ou não falar sobre a morte, nos distancia desse momento final. Estamos concentrados numa existência em prol da vida e queremos a todo o custo pensar cada vez mais nela, excluindo a possibilidade do seu fim. Falta-nos perceber que a vida de cada um de nós é simples, é curta e tem um fim. A morte não é inimiga da vida, são dois lados da mesma moeda: tão certo como termos nascido é o facto de que iremos todos morrer um dia, e de nada mais poderemos ter tanta certeza ao longo da nossa existência.
A nossa vida é como um privilégio único e irrepetível, de momentos únicos e intransmissíveis. Ao aceitarmos a morte e o encurtamento da nossa vida, estamos a aceitar aquele que é o nosso bem mais precioso: o nosso tempo de vida. Ao falarmos de morte, falamos, indubitavelmente, da vida, e por isso, estamos a valorizá-la, a salientar a sua qualidade, mesmo quando sabemos que ela está a acabar ou que ela tem um fim.
Viver cada dia como se ele fosse o último, é dar vida aos nossos dias e não dias à nossa vida.
Autora: Helena M. Sousa
Leia nossa indicação e post “Há vida após a perda”
Siga nosso insta @PensarBemViverBem