Um corpo machucado por choques entre posicionamentos ideológicos “incomoda muita gente”. Negligências para punir dissidentes… “incomodam, incomodam muito mais”! Atos violentos tendem a assumir incômodas, cíclicas e nem sempre reconhecidas formas de manifestação: ponto pacífico entre Judith Butler e Mahatma Gandhi, eis o ponto alto, aliás, para aqui pensarmos juntos sobre as faces da não violência.
Em seu livro “A força da não violência: o vínculo ético-político”, lançado mais recentemente, volta e meia a filósofa feminista contemporânea reflete acerca de aspectos da “não violência” que, no século XX, foram contemplados por Gandhi. Para Butler, abraçando o compromisso com o que ela chama de “igualdade radical”, consideramos que nenhuma vida tem mais valor do que outra. E isso nos lembra a seguinte declaração feita pelo líder político e espiritual:
“O primeiro princípio de ação não-violenta é a não cooperação com tudo que humilha.”M. Gandhi
A crítica ao individualismo se destaca em ambas as trajetórias. Seria despropositada uma não violência vindo à tona direto e reto do interior, isto é, brotando do âmago da alma de um indivíduo tranquilo e em paz. A não violência passa por contextos sofridos e ultrapassa os limites das esferas individuais. Casos de proporções ético-políticas como o racismo, LGBTfobia, feminicídio, capacitismo, necropolíticas e afins exemplificam bem algumas das grandes tensões que reduzem os nossos laços coletivos a nós bastante apertados. Nesse sentido, e a um só tempo, práticas não violentas potencializam transformações de si e da sociedade.
Parafraseando o pacifista indiano, ser a mudança que queremos ver no mundo pressupõe uma constância nas condutas não violentas. Diante das violências que nos abatem, cabe-nos observar e perceber determinadas emoções, sensações, sentimentos e mentalidades se encorpando dentro de nós. Ignorar forças doloridas e condicionamentos duvidosos que se reproduzem violentamente em nossos íntimos dá margem para reproduzimos violências em nossos comportamentos e relações socialmente constituídas.
Quanto a isso, Judith reforça e nos alerta que a imersão em ciclos de violência é condição de possibilidade para a não violência. Foi a presença da tirania na Índia que estimulou Gandhi a se envolver e a se desenvolver na histórica luta massiva de desobediência civil não violenta, sob o princípio de Satyagraha. Tempos mais tarde, no Prefácio do livro “Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais”, de Marshall B. Rosemberg, Arun Gandhi contou como sentir o racismo na pele contribuiu para que ele ganhasse uma temporada de inesquecíveis lições e reconhecimentos na companhia do avô:
“Com frequência, não reconhecemos nossa violência porque somos ignorantes a respeito dela. Presumimos que não somos violentos porque nossa visão da violência é aquela de brigar, matar, espancar e guerrear – o tipo de coisa que os indivíduos comuns não fazem.”Arun Gandhi
Hoje adulto, fundador e presidente do M. K. Gandhi Institute for Nonviolence, Arun testemunha que “crescer como pessoa de cor na África do Sul do Apartheid, na década de 1940, não era nada agradável”. Julgado “negro demais” aos olhos de uns e “branco demais” aos olhos de outros, com apenas 10 anos de idade, ele sofreu um espancamento por jovens brancos e por jovens negros. Confessa ainda sua necessidade de cultivar o aprendizado intensivo de como “lidar com a raiva, a frustração, a discriminação e a humilhação que o preconceito racial violento pode provocar”. Rememorando a etapa propícia para alimentar o desejo de vingança vivida há décadas, ele divulgou o revolucionário exercício que continua a auxiliá-lo no recálculo de suas rotas:
” (…) meu avô me fez desenhar uma árvore genealógica da violência, usando os mesmos princípios usados nas árvores genealógicas das famílias. Seu argumento era que eu entenderia melhor a não-violência se compreendesse e reconhecesse a violência que existe no mundo. Toda noite, ele me ajudava a analisar os acontecimentos do dia – tudo que eu experimentara, lera, vira ou fizera aos outros – e a colocá-los na árvore, sob as rubricas “física” (a violência em que se tivesse empregado força física) ou “passiva” (a violência em que o sofrimento tivesse sido mais de natureza emocional). Em poucos meses, cobri uma parede de meu quarto com atos de violência “passiva”, a qual meu avô descrevia como mais insidiosa que a violência “física”.”
A violência passiva pode estar na agressividade de alguns silêncios, em omissões, negligências, transferências de responsabilidades… Contudo, a não-violência de Gandhi não vislumbrou apenas a violência se manifestando em indivíduos enraivecidos por terem sido passivamente violentados. Percebendo os mecanismos implícitos nas relações interpessoais, Gandhi foi além das raivas individuais implodidas em violências físicas. A conjuntura de aspectos culturais distintos das Américas de 2021 não privou o homem premiado pelo Nobel da Paz de falar sobre as respostas violentas dadas “como membro de uma coletividade”.
Membros da coletividade se camuflam sob o argumento nebuloso de “estarem cumprindo ordens em uma instituição”, porque o “sistema é como é e engole tudo, apesar dos pesares”… Lidar com essas e outras ambiguidades éticas e políticas em torno da prática da não violência é tomado e retomado por Butler como uma luta indispensável e contínua. Num período em que o sucateamento dos serviços públicos denuncia as desigualdades em nome da definição de quem vive e quem morre, para onde nos leva continuar concentrando quase toda a nossa atenção nas questões morais dos indivíduos flagrados cometendo violências físicas? Perante à disponibilidade insuficiente dos leitos, instituições inteiras se tornam palco das escolhas por trás do sacrifício de vidas menos valorizadas, como no caso das vidas negras, das pessoas com deficiência e de idosos. Sem contar o desdém às vidas de sobreviventes lançados à margem, sequer considerados como sujeitos e em completo esquecimento por parte do Estado.
A pensadora aponta a violência contra o outro como violência contra si mesmo, como violência que ataca algo vital para o nosso mundo, para a nossa sociedade: a interdependência.
Resumindo num dos trechos de uma de suas entrevistas:
“Quando alguns de nós agem de modo violento, isso não vai apenas contra os objetos, os outros, as instituições e a natureza, mas também despedaça os laços sociais que nos sustentam.”
J. Butler
Aproveitando, descrevo resumidamente aqui a imagem de capa deste artigo: um nó de marinheiro que, por sua apresentação visual e finalidade, merece ser rebatizado. Em nome da quantidade de laços que terminaram (e prosseguem terminando) em nós, humilde e poeticamente, proponho hoje que os grupos humanos se unam em prol de desfazerem a fama de nó do laço de marinheiro. Laços de marinheiro são tramas fortes que, mais do que auxiliarem na integridade dos barcos isoladamente, previnem que os mesmos se golpeiem, danificando a si e aos outros barcos da frota. À deriva, nas tempestades e calmarias pandêmicas da Covid-19, com Judith Butler, Mahatma e Arun Gandhi, que nós morais, éticos e políticos cessem de sufocar inúmeras vidas em detrimento de outras, provocando-nos a rever e a reforçar a solidariedade dos nossos frágeis laços humanos… Caso tenha se beneficiado com a leitura do presente texto, por gentileza, compartilhe esta provocação não violenta!
#PraTodoMundoVer Na foto do perfil Pensar Bem Viver Bem, eu, Marcela, uso roupão, brincos, cabelos pouco abaixo dos ombros, amarrados de lado e um lenço na cabeça. Abro um sorriso largo, encostada numa parede clara, entre as partes de uma cortina. A minha pele é branca, os olhos e os cabelos escuros. Há um detalhe de colagem sobre a foto de filtro P&B: predominantemente amarela, a ilustração de um pássaro dá ideia de que o bicho está pousado no dorso da minha mão, levemente erguida diante do meu tronco. Fim da descrição.