- Metafísica cartesiana e a busca por um conhecimento inabalável
Numa primeira análise, é premente reiterar as pretensões da filosofia cartesiana, quais sejam: o estabelecimento de um sistema unificado de saberes[1], a necessidade de um fundamento seguro para as ciências e a direção do método para alcançar um conhecimento inabalável[2]. Diante disso, Descartes, em sua obra Meditações metafísicas[3], toma como ponto de partida a chamada “dúvida metódica”[4], apresentando razões e argumentos pelos quais podemos aparentemente duvidar de todas as coisas, sobretudo das materiais, ao menos enquanto não estivermos em posse de uma garantia objetiva e segura para a unidade da ciência[5].
O projeto não é nada menos que a reconstrução do saber, com tudo o que isso implica de crítica e recusa da tradição cultural e dos procedimentos filosóficos da Escolástica [….] a proclamação do alcance limitado do projeto cartesiano está ao lado da enunciação implícita daquilo que o filósofo verdadeiramente almeja e acredita obter: a verdade absoluta. (SILVA, 1993, p. 25)
Sob essa perspectiva, Julián Marías afirma que Descartes, na tentativa de construir uma filosofia totalmente certa e imune às nuances da dúvida, adota, de forma preliminar, uma “filosofia da precaução”. Desse modo, a filosofia da precaução nasce do desejo cartesiano de não errar. Nesse sentido, é nítida a insegurança do autor, o qual chega a afirmar que, de início, nada merece uma confiança plena. Para reforçar a insegurança, o pensador em questão apresenta três argumentos, a saber: o argumento dos erros dos sentidos, o argumento dos sonhos e, por fim, o argumento do gênio maligno[6]. Em vista disso, percebe-se que a dúvida cartesiana é sistemática, provisória, generalizada e artificial, ou seja, tem um propósito. Dessa forma, afirma Marías ( 2015, p. 231):
É preciso pôr em dúvida todas as coisas, pelo menos uma vez na vida, diz Descartes. Não irá admitir nenhuma verdade de que possa duvidar. Não basta não duvidar realmente dela; é preciso que não reste dúvida nem mesmo como possibilidade. Por isso, Descartes faz da dúvida o próprio método de sua filosofia.
Além disso, é importante frisar que há, nos escritos cartesianos, sobretudo em suas “Meditações”, um movimento de interiorização e introspecção[7] para repensar a metafísica e a física e, portanto, estabelecer uma espécie de “fisioterapia do espírito”, que é manifestada, de forma categórica, no projeto de reconstrução do saber e reeducação do pensamento. Exemplo disso é a presença reiterada de conjunções adversativas, as quais refletem a tentativa de Descartes de apresentar os caminhos que estão sendo trilhados por ele e a postura do autor de estar sempre escutando a si próprio e conversando consigo mesmo. Diante disso, o pensador se vale de “demonstrações analíticas”, as quais envolvem, em última instância, uma reconstrução lúcida dos passos do conhecimento. Depreende-se daqui que a filosofia cartesiana se estrutura a partir do “ponto de vista da primeira pessoa”, colocando o sujeito como polo irradiador do conhecimento certo e seguro.
[…] É na filosofia cartesiana que o conceito de Sujeito aparece e se institui, pela primeira vez no pensamento filosófico ocidental, enquanto fundamento e procedência da verdade. O projeto cartesiano é construir um conhecimento que abarque todos os saberes, mas que tenha no sujeito a causa originária de sua verdade. Essa é uma característica que identifica e diferencia a metafísica de Descartes de toda a metafísica que o antecedeu. O Sujeito, enquanto sujeito que fundamenta, a partir de si, o conhecimento verdadeiro e certo […]. (BITENCOURT, 2017, p. 164)
Desse modo, a tentativa de Descartes é ficar totalmente só, sendo que, da própria solidão, terá início a reconstrução do processo de alcançar uma certeza. É a partir da solidão que se dá a origem da chamada “filosofia da precaução”. Em vista disso, atesta Marías (2015, pp. 231-232): “O homem fica sozinho com seus pensamentos. A filosofia vai fundar-se em mim, como consciência, como razão, a partir de então e durante séculos, virá a ser idealismo, a grande descoberta e o grande erro de Descartes”. Em sua primeira meditação, percebe-se o caráter metódico da dúvida, visto que ela nasce de uma decisão, ou seja, é engendrada não pela mera experiência, mas por uma postura voltada a um objetivo, distinguindo-se da “dúvida vulgar ou comum”. Ademais, trata-se de uma dúvida hiperbólica, dotada de caráter sistemático e abordagem generalizada, que terá como foco tratar como falso aquilo que é duvidoso; como enganador o que já me enganou ao menos uma vez. Nesse sentido, Descartes postula e apresenta razões para se duvidar, sobretudo, ao ressaltar argumentos que estendem e radicalizam a dúvida.
Além disso, a dúvida metódica é passível de verificação na própria estrutura das meditações, isto é, em sua linha argumentativa e cadeia de pensamento, que consiste basicamente na apresentação de uma razão para a postura da dúvida e, logo em seguida, o estabelecimento de uma limitação para o argumento em prol do ato de duvidar, sendo que tal limitação é imediatamente acompanhada por uma outra razão de duvidar, que por sua vez dialoga com a limitação da razão anterior. Na primeira meditação, por exemplo, que apresenta como traços fundamentais a suspensão do juízo[8] e a universalização da dúvida, Descartes estabelece como limite ao argumento dos erros dos sentidos a razoabilidade. A limitação ao argumento dos sonhos reside, por sua vez, nos componentes das percepções sensíveis. Portanto, a construção do pensamento cartesiano expressa o caráter metódico da dúvida.
Diante dos fatos supracitados, podemos afirmar que a dúvida cartesiana é metódica, porque ela representa um instrumento, uma ferramenta de conhecimento, cujo aspecto finalístico é alcançar a verdade segura e inabalável. Além de metódica, a dúvida é universal, generalizada, sistemática e provisória. Insta trazer à baila a consideração segundo a qual a dúvida metódica guarda uma conexão íntima com o método geométrico cartesiano, fundado na ordem das razões. Por certo, Descartes retoma o ideal de “filosofia ou ciência primeira”, termo historicamente consagrado, resgatando a temática da ordem, ou seja, da fundamentação e ordenação das disciplinas, mas não mais a partir da ordem das matérias, mas a partir da “ordem das razões”, ou seja, daquilo que o indivíduo pode conhecer primeiramente. Diante disso, constata-se que a ordem é qualificada como um elemento determinante do método cartesiano.
Para a resolução de um problema é preciso haver uma ordem que determine previamente os passos a serem seguidos a fim de se atingir uma solução […] A ordem aparece como elemento central do método porque ela promove uma reorganização dos objetos da ciência, cuja disposição, quando bem feita, torna irrestrito o uso do raciocínio dedutivo. (ANDRADE, 2017, p. 32)
Para Martial Gueroult, a ordem das razões é um rompimento com a ordem das matérias, típica do realismo aristotélico-tomista. Sob essa perspectiva, afirma Justin Skirry (2010, p. 14): “Descartes rompeu com essa tradição ao argumentar que as coisas imateriais, isto é, não perceptíveis pelos sentidos, tais como a alma e Deus, são mais bem conhecidos do que as coisas materiais ou sensíveis”. O método geométrico consiste basicamente em avançar “passo a passo” de uma verdade para a outra, partindo das verdades mais simples para as mais complexas. Enfim, a dúvida metódica cartesiana encontra suas raízes na tentativa de Descartes de encontrar e estabelecer um fundamento seguro para as ciências. É metódica, pois tipifica um instrumento para alcançar uma verdade inabalável. Cabe aqui ressaltar que, para a filosofia cartesiana, existe uma unidade na verdade, unidade esta que permite o próprio estabelecimento de um sistema unificado de saberes. A unidade e objetividade da verdade dialogam com a unidade do pensamento e da própria razão.
A certeza de que as ciências estejam ligadas umas às outras não se refere aos objetos com os quais elas trabalham, que são efetivamente diferentes. Refere-se à razão que permeia toda análise científica. Ou seja, embora cada ciência tenha um objeto específico […] elas expressam uma mesma razão ou sabedoria humana, que se aplica ao conhecimento dos diferentes objetos […] A razão está presente, portanto, nos diversos domínios do saber, e a busca pela verdade não pode deixar de levar em consideração esse fato. (ANDRADE, 2017, p. 15)
Como apontado anteriormente, o projeto cartesiano se estrutura com base numa “filosofia da precaução”, a qual, em última instância, almeja alcançar um conhecimento inabalável. No entanto, como explicar o erro? No bojo da filosofia cartesiana, Deus é qualificado enquanto o fundamento das verdades absolutas e, desse modo, não pode ser responsabilizado pelo conhecimento equivocado e falso. Nesse sentido, é premente ressaltar que as ponderações acerca do problema do erro apresentam um aspecto relevante no sistema metafísico cartesiano, qual seja: “é preciso saber em quais condições ocorre o erro para que possamos avaliar a quem será atribuída a responsabilidade pelo conhecimento falso” (SILVA, 1993, p. 85). Conforme demonstrado pela terceira meditação, Deus é a razão de ser das verdades, isto é, o fundamento da verdade, a garantia das representações claras e distintas. A partir de um argumento ontológico e do procedimento quantitativo de análise das ideias, Descartes deduz a existência de Deus e sua absoluta veracidade[9], ou seja, o Criador não é um enganador. “Daí é bastante evidente que ele não pode ser embusteiro, posto que a luz natural nos ensina que o embuste depende necessariamente de alguma carência” (DESCARTES, 1979, p. 112). Nesse sentido, a indução ao erro representaria uma carência em Deus.
Desse modo, o erro não apresenta ligações com o Ser, que é plenitude e positividade, mas está relacionado ao não-ser. Destarte, o erro não apresenta positividade, visto que é uma ausência. Além disso, Descartes distingue entre dois tipos de não-ser, a saber: a mera negação e a privação. Diante disso, é importante ressaltar que o pensador racionalista se afasta das explicações agostinianas e das chamadas “soluções metafísicas”, atreladas às tentativas cristãs de desculpar a Majestade divina do mal. Para Agostinho, o mal é uma carência, ou seja, uma privação que, enquanto ausência de Ser, não possui uma causa geral. De certa forma, a construção do raciocínio cartesiano afirma ser a resposta supracitada insuficiente para a pretensão de fundamentação segura do saber.
Para Descartes, o erro não é uma mera negação, é uma privação, isto é, uma falta, um defeito, uma imperfeição positiva que se expressa na ausência de algo que eu deveria ter. Portanto, como o erro não constitui uma negação, ele precisa de uma causa e de uma justificativa[10]. Antes de adentrar numa explicação propriamente satisfatória acerca do problema do erro, o filósofo racionalista cogita a hipótese de que talvez haja uma vantagem no errar, já que os homens não conhecem os fins insondáveis de Deus e, por certo, não apresentam uma visão holística do Universo. Em sua soberania, o Criador pode se valer do erro para fins proveitosos e legítimos. Não obstante, tal resposta, de caráter eminentemente agostiniano, não condiz com a pretensão cartesiana de estabelecer um fundamento sólido para as ciências.
Em vista disso, o autor, confirmando que Deus não pode ser responsabilizado pelo erro, procura em si mesmo a causa do erro[11], partindo para uma investigação concernente a um gênero específico de representações, a saber: os juízos. Em termos gerais, o juízo consiste basicamente numa afirmação ou negação acerca de uma ideia e apresenta suas origens na confluência de duas faculdades, o entendimento e a vontade. A primeira engloba o poder de conceber ideias e é limitado. Não obstante, sua limitação não implica imperfeição, pois o entendimento, em seu gênero, é perfeito. Dentro dos seus limites, o poder de conceber ideias é perfeito e não possui uma falha intrínseca, sendo que sua finitude é uma mera negação. Ainda que aperfeiçoado, o entendimento nunca pode ser infinito, pois a infinitude é própria do Criador. Além disso, para fins de esclarecimento, pode-se afirmar que a finitude não é causa propriamente dita do erro; é uma condição necessária, mas não uma condição suficiente. Por sua vez, a faculdade da vontade, compreendida enquanto o poder de afirmar ou negar, é infinita, não possui, em si mesma, limitação, privação ou negação. O fato de a vontade se debruçar sobre o entendimento é um bem, uma perfeição.
Ademais, é importante destacar a unidade da vontade, caracterizada pela simplicidade e indissociabilidade. A faculdade da vontade depende da potência de dois contrários: o afirmar e o negar. A ausência de um dos contrários descaracteriza a essência da vontade. Reafirmando a perfeição da vontade, Descartes assegura que tal faculdade, em sentido formal, tipifica a “imagem e semelhança de Deus” e, portanto, tomada isoladamente, não constitui a causa do erro. Diante disso, o que representa a privação que constitui o erro? “Donde nascem, pois, meus erros”? O erro está na defasagem entre o entendimento e a vontade, ou melhor, no que a vontade faz diante de suas possibilidades, qual é a sua postura diante das representações que não são claras e distintas. “O erro é devido, portanto, à diferença de extensão entre o entendimento e a vontade. O entendimento é limitado, e nem todas as representações são concebidas clara e distintamente. Mas sendo a vontade ilimitada, ela formula juízos também acerca do que não é claro e distinto” (SILVA, 1993, p. 87).
Nesse sentido, o erro provém do mau uso do livre-arbítrio[12], isto é, do mau uso da faculdade da vontade. A privação que constitui o erro reside no estender da minha vontade ao campo das representações obscuras e confusas. Nas palavras de Descartes (1979, p. 120): “E é neste mau uso do livre arbítrio que se encontra a privação que constitui a forma do erro”. Não obstante, Deus poderia ter criado o homem de tal forma que nunca errasse e, apesar disso, permanecesse livre? O autor oferece duas alternativas, quais sejam: 1º) O Criador, enquanto causa atual e contínua, fornece aos homens a inteligência clara e distinta nas ocasiões em que precisarem formular um juízo ou, 2º) Deus, em sua soberania, concede, de forma automática e imediata, a memória que assegure ao homem uma resolução de não julgar acerca de representações obscuras e confusas. Eis as duas alternativas apresentadas por Descartes. Apesar de possíveis, o pensador racionalista apresenta duas respostas, sobretudo, com o intuito de reforçar a não responsabilidade de Deus pelo erro, de atestar o princípio da veracidade divina e, por fim, de assegurar e qualificar efetivamente a Majestade divina como garantia absoluta das representações claras e distintas.
A primeira resposta, de certa forma, retoma as já citadas “soluções metafísicas”, clássicas da teodiceia, e afirma que, se eu estivesse de fato sozinho, realmente a oferta constante de Deus de um entendimento claro e distinto faria sentido. Todavia, a pluralidade e a diversidade do universo implicam múltiplas formas de saber e graus distintos de conhecimento. Desse modo, não é melhor para o todo que as partes sejam imperfeitas? Um entendimento claro e distinto das partes acarretaria decréscimo no Universo. Não obstante, a resposta supracitada não é plenamente satisfatória para o sistema metafísico cartesiano, sendo imprescindível, portanto, uma explicação mais próxima da necessidade de uma fundamentação segura e verdadeira para o conhecimento.
A segunda resposta reside basicamente no destaque ao hábito e ao método. Como Deus não dotou o homem de uma memória automática e imediata de abstenção do juízo em relação às ideias que não são claras e distintas, cabe aos indivíduos o desenvolvimento, mediante o hábito, dessa memória. Eis o caminho para evitar o erro: “a limitação voluntária da capacidade infinita da vontade” (SILVA, 1993, p. 87).
Para evitar cometer erros, é preciso que tenhamos sempre presente que o “conhecimento do entendimento deve sempre preceder a determinação da vontade” […] Ora, uma vez descoberta a causa do erro formal, basta que me atenha firmemente a evitá-la, caso não queira mais falhar- o que é o propósito de Descartes: estabelecer um conhecimento forte e seguro, imune à tirania do erro, que nos leva necessariamente ao ceticismo. Para evitá-lo, basta que retenhamos nossa vontade nos limites de nosso conhecimento, formulando juízos apenas acerca das coisas que concebemos clara e distintamente. (COELHO, 2023, p. 77-78)
Tal limitação voluntária, que tipifica uma tentativa de equalizar o entendimento e a vontade, representa uma das faces da sabedoria, indispensável para a liberdade, caracterizada pela dependência interna do saber verdadeiro.
Esse ajustamento entre vontade e entendimento configura um aspecto da sabedoria. A sabedoria consiste em utilizar com equilíbrio e propriedade todas as faculdades de que Deus nos dotou, a fim de alcançar o saber e a felicidade. O ideal do saber é o conhecimento claro e distinto da totalidade das coisas. Isso não é possível para uma criatura finita. O ideal de sabedoria é dimensionar o que posso ao que sei, isto é, adequar a vontade à esfera dos conhecimentos claros e distintos que o entendimento pode alcançar. (SILVA, 1993, p. 88)
Em vista disso, as conclusões primordiais são: a capacidade de enganar é uma carência; o erro e o engano estão intimamente ligados com a negatividade do ser finito; o erro, enquanto ausência do conhecimento, advém da minha finitude. Por fim, a quarta meditação conclui ressaltando, de forma categórica, o princípio da veracidade divina e a validade das representações claras e distintas.
- Moral como recurso metodológico: a moral provisória
Como abordado anteriormente, a liberdade genuína repousa na liberdade do sábio, ou seja, daquele que é capaz de limitar voluntariamente a capacidade infinita da vontade em função da necessidade de adequação da faculdade volitiva com o entendimento, tendo em vista, primordialmente, a imprescindibilidade de se manter no campo das representações claras e distintas. Certamente, a distinção entre o entendimento e vontade possui desdobramentos nítidos na moralidade. Ora, no bojo da filosofia cartesiana, encontramos uma metodologia eminentemente dedutiva, a qual estabelece que a construção do conhecimento envolve uma passagem gradativa dos fundamentos para as consequências.
Descartes exprime essa ideia na imagem da árvore do saber, cujas raízes são a metafísica; o tronco, a física; e os ramos, a mecânica, a medicina e a moral. Isso significa que uma moral científica só poderá ser deduzida de uma metafísica e de uma física completas, levando em conta as medidas que configuram a passagem de uma a outra dessas ciências. (SILVA, 1993, p. 88)
Diante dos fatos supracitados, constata-se que uma moral genuinamente científica e derradeira não pode existir no estágio da dúvida, nem mesmo durante os períodos de construção e elaboração das ciências que lhes são precedentes. Não obstante, há uma exigência inexorável pela moralidade, isto é, uma imposição pela moral, que se expressa numa demanda passível de verificação desde os primeiros passos na reconstrução do conhecimento e no processo de constituição do sistema unificado de saberes. Por certo, mesmo quando o homem se encontra imerso no movimento de interiorização para repensar a metafísica e a física, ele ainda está no convívio com outros indivíduos, e, desse modo, sujeito à obediência das normas e convenções sociais. De direito, a moral é um conhecimento derivado, ou seja, sua versão definitiva decorre da estruturação de outras ciências e saberes[13]. No entanto, numa dimensão fática, não é possível abdicar dela enquanto a concentração é voltada para o empreendimento de reeducar o pensamento. É a partir disso que Descartes postula uma moral provisória[14], nitidamente de caráter metodológico[15]. Assim, afirma Pierre Mesnard (1936, p. 51):
A Moral provisória responde a uma necessidade absoluta: se a dúvida fosse algo rigorosamente universal, atingiria todas as manifestações de nossa atividade, e pelas perturbações trazidas para a vida prática colocaria em risco nossa atividade intelectual, paralisando o objeto essencial de nossas meditações, “a Procura da Verdade”. Sem a Moral provisória, a própria obra estaria comprometida.
Sob essa perspectiva, discorre Franklin Leopoldo e Silva (1993, p. 88):
A moral é de direito um conhecimento derivado de muitos outros anteriores, mas de fato não posso prescindir dela enquanto me dedico a esses outros conhecimentos. Para resolver esse problema, Descartes elabora uma moral provisória constituída por três máximas, isto é, três regras de caráter geral que deverão orientar sua conduta enquanto prossegue na busca do saber, ao fim do qual poderá talvez formular metodicamente uma moral científica e definitiva. Essas regras estão expostas na terceira parte do Discurso do método.
A primeira máxima da moral provisória cartesiana consiste no respeito às leis, aos costumes, hábitos e convenções do país em que se vive. Ademais, também está incluído na primeira estipulação da moralidade acima apresentada o dever de obedecer aos preceitos da religião na qual foi instruído. No entanto, não se deve renunciar à prudência e moderação, visto que é imprescindível se vincular sempre ao meio-termo, isto é, à mediania entre dois posicionamentos extremos. Na medida em que me desvinculo de antigas concepções e opiniões para trilhar os caminhos do método, ainda sou obrigado a adotar, mesmo que provisoriamente, determinados valores e regras conduta. A filosofia da precaução aponta sempre para a necessidade de uma vinculação com a opinião mais sensata e moderada, a despeito de não ter acesso, de imediato, à veracidade de tais convicções e pontos de vista. Sob essa perspectiva, a verossimilhança passa a ser o critério de escolha no período da moralidade provisória. Trata-se, em última instância, da consideração e estima pelo bom senso.
A segunda máxima expressa uma determinação de caráter, ou seja, a motivação do homem em, ao adotar uma opinião como sensata e verossímil, segui-la categoricamente como se tivesse certeza incontestável de sua veracidade. O bom senso aponta que é mais prudente preservar a constância de um ponto de vista do que se entregar a uma irregularidade nas convicções. Depreende-se daqui uma reprovação da irresolução, mais propriamente da vacilação. A hesitação constante não conduz o sujeito a lugar algum, apenas enfraquece a determinação do espírito. A vacilação deve ser trocada por uma análise probabilística, pois, no âmbito da vida prática, o homem está sempre ligado e submetido a responsabilidade de tomar decisões, mesmo que não tenha uma compreensão sólida e definitiva de todos os aspectos envolvidos para realizar uma escolha e executar uma ação.
A terceira máxima usufrui de uma inspiração eminentemente estoica. Trata-se do ideal de dominar a si mesmo e não se esforçar para tentar controlar os eventos do acaso. Em suma, cabe ao homem governar a si mesmo e não se preocupar com o destino. “É mais sensato tentar vencer os meus próprios desejos do que procurar modificar a ordem do mundo. Melhor adaptar a minha vontade à realidade, visto que o inverso dificilmente acontecerá” (SILVA, 1993, p. 90). Aqui, Descartes parece defender uma postura de aceitação do destino com resignação, afirmando a necessidade de uma postura inabalável diante dos acontecimentos e eventos que não se encontram ao alcance do homem. Em suma:
A moral provisória, portanto, seria simplesmente o compromisso público com os costumes e ensinamentos sociais e religiosos, a ser abandonada quando a verdade pudesse ser estabelecida sem nenhuma sombra de dúvida […] isso se coaduna com o comentário posterior de Descartes a Burman e com o contexto de sua discussão. (GAUKROGER, 1999, p. 379)
As regras e máximas supramencionadas favorecem ao filósofo atuar em conformidade com a ordem social e com a natureza, colocando, assim, a liberdade de pensamento em favor de uma identidade temporária entre virtude e necessidade. Certamente, tais preceitos são momentâneos e provisórios, pois não usufruem de uma validade universal, já que não estão fundamentados, em última instância, por evidências incontestáveis advindos do saber e da dúvida sistemática. Cabe ao homem cumprir as máximas acima apresentadas até estar em plena capacidade de formular e postular regras morais estabelecidas a partir da evidência metódica. No entanto, é importante destacar que Descartes não chegou a formular e elaborar uma moral definitiva. Para melhor explicar tal “carência” na produção teórica cartesiana, deve-se destacar o chamado “domínio misto” na abordagem da união substancial entre a alma e o corpo, domínio este que envolve uma relação mútua entre existência e essência, entendimento e sensibilidade.
É a união substancial entre a alma e o corpo […] vimos como essa união é incompreensível por envolver a comunicação de duas substâncias metafisicamente incomunicáveis. Ora, se no domínio da físico-matemática posso de alguma maneira separar essência da existência e obter conhecimentos claros e distintos da parte essencial do mundo físico, no caso do homem enquanto união substancial não posso operar da mesma forma essa separação sem perder o objeto. É bem verdade que o pensamento, enquanto essência do Eu, é separável e pode ser conhecido autonomamente. Mas a característica do misto no composto substancial é a indissociabilidade de fato das substâncias. Descartes ilustra essa fato dizendo que a alma não está no corpo como piloto em seu navio, isto é, apenas como espectador do que acontece na parte material. A alma está substancialmente ligada ao corpo e com ele mantém relação de total intimidade […] Isso significa que não é possível um conhecimento moral sem levar em conta a sensibilidade. (SILVA, 1993, p. 91)
Ao reiterar a indissociabilidade de fato entre as duas substâncias (corpo e alma), o filósofo abre espaço para uma investigação sobre a sensibilidade, a qual, no âmbito da moral, se manifesta, sobretudo, nas paixões. Diferentemente da abordagem da filosofia tradicional, cujas análises estabeleciam uma distinção entre a ação e a paixão, mais especificamente, entre aquilo que o sujeito faz e aquilo que o sujeito sofre, Descartes estabelece uma relação de igualdade e semelhança entre ação e paixão. Em última instância, o que acaba por diferenciar a ação da paixão é a separação estabelecida entre emissor e receptor. Em seu livro As paixões da alma[16], o pensador em questão realiza uma reflexão sobre os mecanismos das paixões, os vínculos entre a alma e corpo no tocante ao modo como os homens respondem às tendências sensíveis e de que forma o pensamento se conecta com elas. Numa perspectiva geral, as paixões importam para a moralidade, porque a vida moral depende do modo como a racionalidade lida com as tendências sensíveis. Por si mesmas, as paixões são boas, mas o que as qualifica como perniciosas é o seu uso indevido. Nesse sentido, o conhecimento das paixões é indispensável para que se possa ter alguma espécie de domínio sobre elas. O esclarecimento supracitado favorecerá uma compreensão de distinção entre os aspectos e dimensões das paixões que são referentes aos movimentos corporais daquelas que são próprias do pensamento.
Para o escritor em análise, existe uma ligação, um elo de comunicabilidade, entre os impulsos categoricamente sensíveis e a alma, vínculo este estabelecido pela glândula pineal, a “sede da alma”. É por meio dela que a alma atua sobre o corpo e é através desta glândula que os homens recebem as excitações e perturbações advindas da esfera sensível. No entanto, qual é o grau de conhecimento que podemos ter das paixões? O próprio fato de estarem sujeitas a um domínio misto é um impeditivo para um conhecimento totalmente certo e derradeiro sobre as tendências sensíveis. Desse modo, não é possível um domínio integral das paixões por meio da racionalidade. Nesse sentido, uma racionalidade completa é impossível no âmbito da moralidade. A racionalidade, no nível moral, é sempre uma racionalidade possível. No entanto, é sempre exigida e prescrita a precedência do intelecto sobre as paixões. A racionalidade possível está ligada ao ideal de sabedoria. Ao reiterar uma autonomia do pensamento, tanto na vida moral, quanto na capacidade de alcançar uma verdade definitiva e incontestável, Descartes opera uma transformação na “interioridade agostiniana”.
Descartes introduz na interioridade agostiniana uma mudança radical… Poderíamos descrever essa mudança dizendo que Descartes situa as fontes morais [inteiramente] dentro de nós […] Em relação a Platão, Descartes apresenta um novo entendimento da razão e também da hegemonia da razão sobre as paixões, que ambos veem como a essência da moralidade. (TAYLOR, 1997, pp. 189-190)
Ademais, a própria noção de moral como recurso metodológico pode ser enquadrada naquilo que Charles Taylor denominou de “razão instrumental cartesiana”, em detrimento do “Logos ôntico” platônico. Nesse sentido, as ideias são esvaziadas de seu sentido de essência[17] (sua significação “ôntica”) e se tornam meros conteúdos intrapsíquicos, como modos mentais. O novo modelo de domínio racional proposto por Descartes se apresenta como uma questão de controle instrumental, associada a uma objetificação (“objetivização”) do mundo
Libertar-se da ilusão que mistura mente e matéria é ter uma compreensão desta última que facilita seu controle. Da mesma forma, libertar-se das paixões e obedecer a razão não se define mais como a da visão [a contemplação da ordem cósmica], e sim como uma atividade diretiva que subordina um reino funcional [as paixões] […] Quando a hegemonia da razão passa a ser entendida como controle racional, como a capacidade de objetificar o corpo, o mundo e as paixões, isto é, de assumir uma postura inteiramente instrumental em relação a eles, as fontes da força moral não podem mais ser vistas como exteriores a nós […]. (TAYLOR, 1997, pp. 197-200)
Inclusive, a própria existência de Deus tornou-se uma etapa no caminho rumo à verdade autossuficiente, ou seja, um estágio no progresso do homem em direção a um conhecimento certo e seguro, ou melhor, para a fundamentação das ciências. Eis a diferença da virada reflexiva cartesiana em relação à virada reflexiva de Agostinho, a despeito de ambos os autores terem optado pela “via da interioridade”, pela análise introspectiva e pelo movimento de interiorização. Apesar de os pensadores supracitados terem se vinculado a uma espécie de “idealismo”, a razão instrumental cartesiana se distingue da “metafísica da interioridade” de Agostinho, a qual, em última instância, conduz a uma submissão necessária à transcendência.
Para Agostinho, o caminho interior era apenas um degrau do caminho para cima. Algo semelhante permanece em Descartes [uma vez que a prova da existência de Deus é feita a partir da certeza da autoconsciência] […] Para Descartes, o objetivo da virada reflexiva é obter uma certeza autossuficiente [enquanto Agostinho visava a uma dependência essencial de todas as coisas a Deus […] O que obtenho no cogito e em cada passo sucessivo na cadeia de percepções claras e distintas é exatamente esse tipo de certeza, que consigo gerar para mim ao seguir o método certo… O que aconteceu é que a existência de Deus tornou-se um estágio em meu progresso rumo à ciência por meio da ordenação metódica das percepções evidentes. A existência de Deus tornou-se [apenas] um teorema em meu sistema de ciência perfeita. (TAYLOR, 1997, 207)
Ademais, outro aspecto importante da moral cartesiana reside na compreensão de generosidade, definida agora enquanto controle racional de si, domínio racional sobre si mesmo. Nesse sentido, a generosidade se encontra atrelada com a consciência da dignidade do ser racional, isto é, com a consciência da dignidade da pessoa humana. Trata-se de controlar, na medida do possível, as paixões e usá-las em conformidade com os desígnios estabelecidos pela vontade racional. No campo da vida prática, temos que agir de acordo com a racionalidade possível, pois não está ao alcance do homem viver integralmente em consonância com um conhecimento certo, seguro e infalível. No âmbito prático, agimos tão somente por um conhecimento provável e falível. Desse modo, o que nos resta é proceder da melhor maneira possível. Eis o ideal de generosidade em Descartes. Para Benes Alencar Sales, a doutrina cartesiana da generosidade é fruto da intersecção de diversas correntes éticas, dentre elas: a ética aristotélica das virtudes, o ideal de postura inabalável dos estoicos, a administração racional dos prazeres reiterada pelos epicureus e, por fim, o valor moral da caridade cristã.
A paixão da generosidade predispõe o homem a atingir a virtude do mesmo nome, ou seja, o impulso espontâneo dessa paixão transformar-se em hábito que constituirá a virtude da generosidade […] Descartes não teve a preocupação de apresentar um quadro de virtues à semelhança do que ocorre com a classificação das paixões. Para ele, todas as nossas virtudes gravitavam em torno da generosidade. A verdadeira generosidade manifesta-se quando o homem, além de reconhecer na livre disposição de suas vontades o que há de mais importante para ele, sente também em si uma firme e constante resolução de bem usá-la. Fazendo, isto, estará seguindo perfeitamente o caminho da virtude […] A doutrina da generosidade em Descartes constitui uma extraordinária síntese de vários modelos éticos de diversas épocas. Inicia-se com a magnanimidade aristotélica, preocupada com a verdadeira grandeza de espírito, passando pelos estoicos, que enfatizam a retidão nos julgamentos e a firmeza nas ações, estendendo-se aos epicuristas, que buscam o prazer num objeto mais refinado, como contentamento do espírito, e encerrando-se com as virtudes cristãs da humildade e da caridade (SALES, 2013, pp. 174-175)
Além de uma moral da generosidade, pode-se extrair da filosofia cartesiana uma moral do contentamento, mais atrelada ao ideal estoico de aceitar o destino com resignação. Seguindo a tendência das correntes filosóficas do helenismo e dos moralistas cristãos, Descartes abriu espaço para a temática da felicidade, qualificando-a enquanto o fim último do homem sensato. A felicidade seria a suprema beatitude, o contentamento do espírito. Os prazeres sólidos são aqueles qualificados como duráveis, estimados e apreciados pela razão. A beatitude suprema é a satisfação plena do espírito, satisfação esta advinda da posse do soberano bem. Por fim, cabe caracterizar a moral cartesiana como uma moral do amor e da responsabilidade. Descartes distingue entre três tipos de amor, a saber: a afeição (quando a estima do homem pelo objeto amado é menor do que a afeição que ele tem por si mesmo), amizade (quando a estima pelo objeto amado se equipara à afeição que o homem tem por si mesmo) e a devoção (quando a estima pelo objeto amado é superior à afeição que o indivíduo tem por si mesmo). Por certo, a devoção deve estar voltada a Deus. O amor a Deus deve ser o mais perfeito de todos. Em última instância, parece haver, ainda que de maneira suava e implícita, uma ordenação do amor na filosofia moral cartesiana.
O texto acima nos revela a genialidade de Descartes, que, em poucas linhas, foi capaz de sintetizar uma moral de elevado conteúdo. O Filósofo nos mostra, em primeiro lugar, que cada um de nós é uma pessoa, um ser singular, com interesses próprios que nos distinguem de todas as demais pessoas. Ao mesmo tempo, enfatiza nossa condição de um ser no mundo. Apesar de sua autonomia como pessoa livre, o homem não poderia subsistir só, fora do convívio das outras pessoas. Ele necessita estabelecer laços com outros homens. Além de estar junto aos outros seres de sua espécie, ele é uma parte do universo, um ser situado geográfica, ambiental e biologicamente. O Universo, a Terra, o país, sua cidade constituem seu espaço vital, sua morada. Ele se encontra ligado aos laços de família, pelo sangue e pelos compromissos. Tudo isto faz que sejamos seres engajados, responsáveis, com compromissos recíprocos entre nós mesmos, responsabilidade com o Universo, de que fazemos parte, e com o planeta Terra, onde vivemos. Para uma convivência pacífica, interativa e enriquecedora, é preciso preferir os interesses do todo ao de cada pessoa em particular. No entanto, recomenda-nos o Filósofo a necessidade de moderação e discrição, dizendo-nos que: pôr os interesses do todo acima do interesse particular não é um princípio absoluto. (SALES, 2013, pp. 181-182)
A despeito de o ideal cartesiano de sabedoria estar ligado a uma espécie de “razão instrumental”, como diria Charles Taylor, ou seja, ao empreendimento de estabelecer uma fundamentação segura para as ciências, a moral, em Descartes, ainda que de caráter metodológico, abarca uma série de valores e princípios de tradições filosóficas anteriores, demonstrando, assim, sua complexidade e dinamismo, sobretudo, ao abarcar, em seu bojo, traços de diversas correntes éticas, como a eudaimonia aristotélica, a ataraxia dos estoicos, a caridade cristã, a racionalidade dos epicureus e a ênfase na responsabilidade do homem para com a natureza e a sociedade.
Diante disso, percebe-se que a ciência não possui meramente um fim contemplativo, visto que também se encontra intimamente associada com o âmbito prático. A primazia do conhecimento intelectual não implica apenas em uma maior dignidade do intelecto ou em sua prioridade no tocante às tendências sensíveis, mas também indica que tal superioridade possibilita ao homem uma ordenação racional sobre todos os aspectos e dimensões de sua vida. Ora, nisso consiste o ideal máximo de sabedoria: uma relação bem consolidada entre teoria e prática. Em sua obra Princípios da filosofia, Descartes qualifica a sabedoria enquanto o conhecimento de tudo o que é necessário para a correta condução da vida humana, para a manutenção e preservação de sua saúde e, por fim, para a invenção de todas as artes (“artes” no sentido de “técnica”, tal qual como concebida por nós na contemporaneidade). A sabedoria inclui, portanto, um processo de constante racionalização de todas as dimensões da vida.
Por essa razão, a verdade tem uma dupla finalidade: deve proporcionar conhecimentos absolutamente rigorosos, obtidos metodicamente, o que em si já significa uma satisfação das necessidades intelectuais; e deve permitir que, a partir desses conhecimentos, o homem promova os meios adequados para a satisfação das necessidades inerentes à vida. Quando não se obtém um conhecimento absolutamente evidente, como é o caso do saber acerca das paixões, o alcance da aplicação será apenas parcial. Por isso, como vimos a vida moral não alcançar a completa racionalização de todos os aspectos da vida através de um conhecimento perfeito das verdades que dizem respeito a esses diferentes aspectos. Isso pode ser apenas um ideal, mas está profundamente arraigado na concepção cartesiana de sabedoria. (SILVA, 1993, p. 94)
Em vista disso, pode-se afirmar que, na filosofia cartesiana, ciência e técnica estão intimamente associadas. O homem não está destinado tão somente a uma contemplação dos segredos, mistérios e fenômenos da natureza, mas também a exercer domínio sobre eles, colocando, assim, o conhecimento da natureza em prol do bem da humanidade. Por certo, isso está em conformidade com os ideais de subjetividade, de primazia do intelecto e de liberdade. Desse modo, a técnica é pensada num sentido eminentemente humanista. O homem, enquanto natureza composta, apresenta como traço distintivo aquilo que justamente configura a sua essência: o pensamento, isto é, o espírito. O pensamento é, em última instância, a fonte de determinação e definição do sujeito. Por fim, deve-se destacar que a técnica, em Descartes, aparece sempre vinculada aos elementos da sabedoria e da moral, englobando, assim, a virtude da generosidade, o contentamento do espírito e a responsabilidade.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Érico. A ciência em Descartes: fábula e certeza. São Paulo: Edições Loyola, 2017. (Coleção leituras filosóficas)
BITENCOURT, Joceli Andrade. Descartes e a invenção do sujeito. São Paulo: Paulus, 2017. (Coleção Filosofia em questão)
COTTINGHAM, John. A filosofia de Descartes. Lisboa, Edições 70, 1989.
COELHO, Rafael Teruel. Descartes e a metafísica das Meditações. São Paulo: Paulus, 2023. (Coleção Como ler filosofia)
DESCARTES, René. As paixões da alma. Tradução de Jacob Guinsburgh e Bento Prado Jr., prefácio e notas de Gérard Lebrun, introdução de Gilles-Gaston Granger, vida e obra por José Américo Pessanha. Coleção Os Pensadores, 4. ed., vol. 1. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
DESCARTES, René. Meditações metafísicas. Tradução de Jacob Guinsburgh e Bento Prado Jr. Coleção Os pensadores. 2. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
GAUKROGER, Stephen. Descartes: uma biografia intelectual. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, EdUERJ/Contraponto, 1999.
GILOSN, Étienne. Discours de la méthode; Texte et commentaire. Paris, Urin, 1925.
GILSON, Étienne. Commentaires. In: DESCARTES, René. Discours de la méthode. Texte et commentaire. 6. ed. Paris, Vrin, 1987.
GUEROULT, Martial. Descartes selon l’ordre des raisons- L’âme et Dieu. Paris, Aubier, 1975, v. I.
GUEROULT, Martial. Descartes selon l’ordre des raisons- L’âme et le corps. Paris, Aubier, 1953, v. II.
MARÍAS, Julián. História da filosofia. Tradução por Cláudia Berlinder. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
MESNARD, Pierre. Essai sur la morale de Descartes. Paris, Boivin & Cie Éditeurs, 1936.
SALES, Benes Alencar. Descartes: das paixões à moral. São Paulo: Edições Loyola; Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2013.
SILVA, Franklin Leopoldo e. Descartes: a metafísica da modernidade. São Paulo: Moderna, 1993.
SKIRRY, Justin. Compreender Descartes. Tradução de Marcus Penchel. Petrópolis: Vozes, 2010.
TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. São Paulo: Loyola, 1997.
TEIXEIRA, Lívio. Ensaio sobre a Moral de Descartes. São Paulo, Brasiliense, 1990.
[1] A relação entre ciência e metafísica na construção de um sistema unificado de saberes ocupa um lugar determinante no projeto cartesiano. A questão da fundamentação das disciplinas também representa um ponto crucial no bojo da filosofia cartesiana. Nesse sistema unificado de saberes, que, para Descartes, se estrutura numa “árvore de saberes”, a metafísica é a raiz, responsável pela sustentação mecânica.
[2] Cf. COTTINGHAM, John. A filosofia de Descartes. Lisboa, Edições 70, 1989.
[3] Em suas Meditações metafísicas, Descartes se vincula a um sentido denotativo, dotado de delimitação conceitual e precisão dos termos.
[4] Cf. GILOSN, Étienne. Discours de la méthode; Texte et commentaire. Paris, Urin, 1925.
[5] Descartes é enfático na afirmação segundo a qual a verdade e o saber são sistemáticos. Ademais, a unidade do saber é constantemente reiterada pelo pensador em questão. Sob essa perspectiva afirma Franklin Leopoldo e Sila (1993, p. 19): “O caráter sistemático so saber e da verdade exige que os fundamentos metafísicos do conhecimento apareçam como sustentáculos dos procedimentos metódicos. Descartes possuía uma crença profunda na simplicidade; para ele, o verdadeiro aparece naturalmente como claro e sem complicações […] há, no entanto, algo de mais profundo sob esse culto da simplicidade e da clareza: é a crença na autonomia do pensamento, a ideia de que a razão, bem dirigida, basta para encontrar a verdade […] o espírito humano tem em si os meios de alcançar a verdade, se souber cultivar sua independência e conduzir-se com método”.
[6] Tratam-se das razões e motivos pelos quais aparentemente podemos duvidar de tudo.
[7] O movimento de interiorização e a análise introspectiva, isto é, o ponto de vista da primeira pessoa, expressam, em última instância, duas grandes tendências e características do pensamento cartesiano, quais sejam: o subjetivismo e o idealismo. Descartes toma o sujeito como ponto de partida de todo conhecimento, como polo irradiador de toda certeza (SILVA, 1993, p. 07). É a partir de si mesmo e de suas próprias representações que o filósofo em questão irá trilhar um caminho ao conhecimento inabalável. “O sujeito tem uma função pelo menos ordenadora do conhecimento. É ele a sede da certeza de todos os objetos. Subjetivismo não significa, obviamente que a mente de cada um detenha os critérios que orientarão o conhecimento. Subjetivismo quer dizer apenas primado da subjetividade, precedência do sujeito no processo de conhecimento […] À hegemonia do sujeito corresponde o que se convencionou denominar em Descartes de primado das representações. Podemos dizer, em princípio, que representação é todo e qualquer conteúdo presente na mente […] Em Descartes, tudo o que temos primeiramente são representações das quais se trata de atestar a realidade […] parto das ideias e procuro nelas indícios que atestarão que existe algo que lhes corresponde” (SILVA, 1993, pp. 8-10). Sob essa perspectiva, afirma Rafael Coelho (2023, pp. 48-49): “Descartes argumentava que é por meio das ideias que poderíamos conhecer o mundo, pois, sendo a mente imaterial, ela jamais poderia conhecer diretamente a matéria. Nesse sentido, as ideias cumpriam um papel intermediário entre a razão (sujeito cognoscente, isto é, aquele que é capaz de conhecer) e o mundo exterior”.
[8] A suspensão do juízo é, na realidade, a suspensão do juízo de correspondência entre o intelecto/a consciência e a realidade. Trata-se da suspensão dessa operação mental que estabelece um vínculo, uma adequação, entre a representação e o mundo material. As representações são tomadas por si mesmas. As ideias podem ser consideradas tão somente enquanto ideias e isto independe da vinculação do conteúdo representativo com a coisa mesma (SILVA, 1993).
[9] “ Um ser soberanamente perfeito não pode promover a falsidade e, portanto, não pode me levar a ter como verdadeiro o que de fato não é. Disso decorre que Deus é fundamento da verdade, ou seja, todas as representações que se me apresentarem metodicamente como claras e distintas estão garantidas por Deus, verdade suprema e razão de ser de todas as demais” (SILVA, 1993, p. 68).
[10] “Assim, conheço que o erro enquanto tal não é algo de real que dependa de Deus, mas que é apenas uma carência; e, portanto, que não tenho necessidade para falhar, de algum poder que me tenha sido dado por Deus particularmente para esse efeito, mas que ocorre que eu me engane pelo fato de o poder que Deus me doou para discernir o verdadeiro do falso não ser infinito em mim. Todavia, isto ainda não me satisfaz inteiramente; pois o erro não é uma pura negação, isto é, não é a simples carência ou falta de alguma perfeição que não me é devida, mas antes é uma privação de algum conhecimento que eu deveria possuir”(DESCARTES, 1979, p. 116).
[11] Acerca disso, afirma o pensador racionalista: “De tudo isso reconheço que nem o poder da vontade, o qual recebi de Deus, não é em si mesmo a causa de meus erros, pois é muito amplo e muito perfeito na sua espécie; nem tampouco o poder de entender ou de conceber, não há dúvida de que tudo o que concebo, concebo como é necessário e não é possível que nisso me engane” (DESCARTES, 1979, p. 119).
[12] No texto em questão, livre-arbítrio e vontade são sinônimos e não representam a genuína liberdade. O poder de afirmar ou negar é tão somente uma pré-condição da liberdade.
[13] Sob essa perspectiva, Gueroult afirma que a moral provisória, compreendida enquanto uma série de máximas eminentemente práticas, foi postulada por Descartes com o objetivo de preceder a moral definitiva e científica, não apenas no quesito temporal, mas também de acordo com a ordem instituída pelo novo método, visto que se torna imprescindível a procura de uma verdade incontestável e inabalável em conformidade com esse método. Nesse mentido, as máximas da moral provisória usufruem de legitimidade somente em relação à ideia de uma moral matemático-dedutiva, exata e derradeira, a qual, em última instância, acabou por não se concretizar. Diante disso, afirma Gueroult (1953, p. 239): “Este será o drama da moral cartesiana, que se lança num emaranhado de dificuldades de uma doutrina provisória anunciando uma doutrina definitiva que, ao contrário, confirma e consolida, uma vez por todas, a moral que se acreditava dever ser provisória”. Além disso, “ todas essas considerações sobre a medicina e a moral não oferecem, em seu conjunto, aquela tensão filosófica, aquele rigor e aquela certeza que sempre caracterizaram o pensamento de Descartes. Observa-se, todavia, que elas (a medicina e a moral) se desenvolvem fora do sistema, tal como as Meditações o desenham, como consequências de o Tratado das paixões ou a Correspondência as terem considerado parcialmente ou de maneira solta” (GUEROULT, 1953, p. 270).
[14] Cf. TEIXEIRA, Lívio. Ensaio sobre a Moral de Descartes. São Paulo, Brasiliense, 1990.
[15] Cf. GILSON, Étienne. Commentaires. In: DESCARTES, René. Discours de la méthode. Texte et commentaire. 6. ed. Paris, Vrin, 1987. Gilson não compreende a moral por provison tão somente a partir de uma concepção puramente metodológica, isto é, a partir de uma precaução facultativa. Para Gilson, “ela contém uma fundamentação metafísica de duas diferentes ordens: a da verdade e a do bem. O agir humano no dia a dia é dirigido pela vontade na busca do bem, do melhor para si. A vida delega à vontade o poder de fazer continuamente escolhas sem o auxílio do intelecto. A moral provisória tem seus princípios claramente definidos, distintos dos princípios teóricos. No domínio do conhecimento, não há lugar para o provável. Aí, o provável não vale mais que o falso. No agir, quando o uso da vida está em jogo, deixar de querer o mais provável é ficar condenado voluntariamente à infelicidade. Todas as máximas da moral provisória apresentam uma dupla propriedade: a de não serem verdades demonstradas, ou seja, de valor teórico, e a de assegurarem ao homem, que não conhece o bem com certeza, ou que o ignora completamente, as oportunidades mais numerosas de encontrá-lo. Gilson conclui que na procura das verdades máximas provisórias são requeridas condições práticas dessa possibilidade. Todavia, só têm sua legitimidade garantida como condições preliminares dessa procura” (SALES, 2013, pp. 61-62).
[16] DESCARTES, René. As paixões da alma. Tradução de Jacob Guinsburgh e Bento Prado Jr., prefácio e notas de Gérard Lebrun, introdução de Gilles-Gaston Granger, vida e obra por José Américo Pessanha. Coleção Os Pensadores, 4. ed., vol. 1. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
[17] Embora Taylor afirme que, na filosofia cartesiana, as ideias são meros modos de pensamento, sendo que perderam seu sentido de essência, é importante elucidar que Descartes estabelece uma distinção entre realidade objetiva e realidade formal das ideias. Numa perspectiva, as ideias sim podem ser consideradas enquanto meras modificações do espírito, isto é, formas de pensar. Não obstante, num outro modo de análise, as ideias possuem um caráter ontológico, são realidades por si mesmas. “Independentemente da vinculação do conteúdo representativo à coisa mesma- realidade exterior à mente- esse conteúdo, no seu estatuto de ideia, é alguma coisa, é precisamente uma representação. É possível, portanto, em Descartes, falar-se de algo como o ser da ideia: o seu caráter ontológico, diríamos, numa linguagem filosófica mais exata. Isso é algo de novo que Descartes introduz na filosofia; a ideia pode ser considerada apenas enquanto ideia, e já aí se pode falar de ser […] Para Descartes, o campo de análise são as ideias da menta enquanto realidades. São as ideias consideradas dessa maneira que ele chama de “realidades objetivas” (SILVA, 1993, p. 64).