A CULTURA DO CANCELAMENTO: O “TRIBUNAL” DAS MÍDIAS SOCIAIS

A CULTURA DO CANCELAMENTO: O “TRIBUNAL” DAS MÍDIAS SOCIAIS

Em suas reflexões políticas, o filósofo francês Alexis de Tocqueville avaliou a primazia do número, ou melhor, a tirania da maioria com um dos grandes perigos da democracia. Sob essa perspectiva, a capacidade de coação da opinião majoritária limita os valores da liberdade e da pulsão pela igualdade, princípios essenciais de uma sociedade eminentemente democrática. Desse modo, a capacidade que maioria apresenta de excluir uma pessoa do bom convívio social e de determinar, em última instância, sua culpa ou inocência, além de representar uma perversão do bom senso, limita a força do Estado como associação institucional dotada de jurisdição. Eis as fragilidades da chamada cultura do cancelamento, que se manifesta atualmente no tribunal das mídias sociais. 

Numa perspectiva geral, a cultura do cancelamento representa um método contemporâneo de excluir  uma pessoa de sua posição de destaque na sociedade, principalmente, em razão de suas opiniões tidas como controversas, questionáveis e problemáticas. Dessa forma, trata-se de um fenômeno típico das redes sociais, sobretudo, em razão da facilidade que nelas reside em agrupar e reunir usuários para um propósito em comum. Embora tal prática apresenta aspectos positivos pontuais (mínimos), visto que, em alguns casos, as denúncias possuem respaldos legítimos em decorrência de injustiças e pronunciamentos preconceituosos feitos por outrem, o principal erro do cancelamento virtual consiste na prática dos usuários de reivindicação do julgamento derradeiro sobre a moralidade, inocência e culpabilidade das pessoas. 

Diante disso, o medo do julgamento da multidão implica o surgimento de uma esfera social não espontânea, isto é, cada qual fica isolado em suas opiniões, havendo, assim, uma renúncia da capacidade de se pronunciar em prol do politicamente correto e das opiniões majoritariamente aceitas como convenientes. Por certo, tal fenômeno limita a liberdade de expressão. Em vista disso, é premente o resgate do pensamento do filósofo inglês John Stuart Mill: “Se toda a humanidade menos um fosse da mesma opinião, e apenas um indivíduo fosse de opinião contrária, a humanidade não teria maior direito de silenciar essa pessoa do que esta o teria, se pudesse, de silenciar a humanidade”. Nesse sentido, a cultua do cancelamento representa uma ameaça ao espírito democrático e às liberdades individuais.  

Em virtude do que foi apresentado, é importante frisar que o julgamento derradeiro sobre a moralidade dos indivíduos é uma prática perigosa, visto que nem mesmo o Estado e seu aparato institucional são imunes aos erros em suas decisões e sentenças. Além disso, o cancelamento é contrário aos princípios da liberdade de expressão e da construção de um constitucionalismo democrático. Por fim, comenta o professor Daniel de Carvalho: “Dada a complicação de nossas vidas, bem como todas as possibilidades de mudanças profundas que são próximas da condição humana, não seria um tanto reducionista taxar uma pessoa como essencialmente má ou essencialmente boa?”

Deixe seu comentário