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A cultura do cancelamento e a dissolução dos princípios democráticos

“Sócrates: Portanto, penso que se queremos tomar decisões com acerto, é pelo critério do conhecimento que devemos tomá-las, e não pelo critério do maior número.”

Se toda a humanidade menos um fosse da mesma opinião, e apenas um indivíduo fosse de opinião contrária, a humanidade não teria maior direito de silenciar essa pessoa do que esta o teria, se pudesse, de silenciar a humanidade. (John Stuart Mill) 

A tão famigerada “cultura do cancelamento” está adquirindo uma influência crescente na conjuntura das mídias e redes sociais. Inquestionavelmente, o cenário brasileiro é um dos mais afetados pelos elementos dessa nova modalidade de ostracismo. Basicamente, a cultura do cancelamento consiste em excluir da influência social pessoas que realizaram comentários considerados “questionáveis” e contrários aos princípios da cosmovisão majoritária de justiça social. Contudo, o perigo desta forma de exclusão reside numa pretensão obstinada, por parte de alguns grupos, de possuir e ditar a justiça, o certo e, por conseguinte, a própria verdade. Com a finalidade de garantir a aplicação da “justiça”, os militantes desse ostracismo agem de forma implacável na punição, de forma que a pessoa cancelada não tenha mecanismos próprios de defesa, tampouco, possibilidade de se desculpar e retratar-se.

Conforme supramencionado, o cancelamento atua de forma inflexível e categórica na punição e, até mesmo, na humilhação dos indivíduos taxados de abjetos e funestos. Em relação ao Brasil, esse ostracismo social adquiriu uma realidade substancial, sobretudo, devido aos reality shows. Todavia, a dimensão crescente dessa exclusão, na conjuntura brasileira, manifesta-se na violação dos direitos fundamentais da pessoa “cancelada”, cujos próprios familiares e filhos acabam se tornando alvos do implacável linchamento virtual. Dessa maneira, verifica-se a violação do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, já que inúmeras crianças foram afetadas pela “exclusão” social e humilhação de seus pais.

Apesar de legítima a indignação diante de fatos e práticas claramente injustas, o engajamento social deve zelar pela preservação da dimensão axiológica dos preceitos da moderação e legalidade, já que, a prática da justiça, enquanto valor, exige a atenção para com os elementos da dialética e, sobretudo, disposição em fazer com que a pessoa aprenda com seus erros e possa, por conseguinte, melhorar em seu comportamento. Contudo, conforme  aponta Zygmunt Bauman, a cegueira moral adquiriu uma influência notável na contemporaneidade. Destarte, a falta de sensibilidade ética com o sofrimento alheio faz com que as punições aos violadores do “politicamente correto”, em alguns casos, sejam totalmente desproporcionais. Sendo assim, as pessoas linchadas virtualmente sofrem ataques maciços e frenéticos.

 Diante do exposto, há uma clara compreensão das implicações funestas do cancelamento para a ordem democrática. Nesse sentido, vale frisar o pensamento do filósofo Alexis de Tocqueville, cujas obras, ainda no século XIX, previram ,de forma nevrálgica, os perigos de exclusão das pessoas devido aos seus  posicionamentos equivocados. Em suas análises, o pensador reiterou que a força da opinião pública é um dos principais fatores que contribuem para a desagregação dos valores democráticos, sobretudo, dos princípios relacionados à liberdade de expressão e de  pensamento, uma vez que os indivíduos manifestariam medo e temor  ao pronunciarem suas opiniões e ideias. Destarte, tal medo contribuiria para a consolidação de uma “tirania da maioria”, cujo resultado lógico seria a atomização do indivíduo e o sufocamento de toda espontaneidade humana.  Tais ideias verificam-se claramente na realidade brasileira, cujos indivíduos demonstram um receio profundo em expor suas reais convicções. Sendo assim, há um medo constante do eventual “linchamento virtual”.

Além disso, condenar uma pessoa, de forma absoluta e categoria, revela uma espécie de imaturidade e obstinação, pois, conforme ressalta o professor Daniel Gomes de Carvalho: “ Dada a complicação de nossas vidas, bem como todas as possibilidades de mudanças profundas que são próximas da condição humana, não seria um tanto reducionista taxar uma pessoa como essencialmente má ou essencialmente boa?”.

Em virtude dos fatos mencionados, percebe-se que, no Brasil, o cancelamento contribuiu, de forma significativa, para destruição dos princípios elementares da liberdade de expressão, liberdade de pensamento, dignidade da pessoa humana e do próprio constitucionalismo democrático, cujos valores já se encontram ameaçados pela atual crise política nacional. Ademais, esse nova modalidade de ostracismo afeta a estabilidade de uma justiça centrada na legalidade e no devido processo legal, já que os promotores do linchamento virtual avocam a posse da verdade e do julgamento acerca da inocência de um indivíduo. Enfim, a realidade brasileira tem muito a perder com a expansão do cancelamento.

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